O desvendamento do mundo moderno através do pensamento geográfico

Tatiane Marina Pinto de Godoy*

 

Resenha do livro: CARLOS, Ana Fani Alessandri. O lugar no/do mundo - São Paulo: HUCITEC 1996.
 

Esta é a proposta de Ana Fani Alessandri Carlos, Professora Titular em Geografia da USP, que em 1996 publicou seu 3º livro intitulado “O Lugar no/do Mundo”. Tratando dos conceitos de Lugar, Globalização, Estado, Capitalismo e Reprodução a autora mostra em uma coletânea de 8 capítulos a sua preocupação com uma análise crítica do espaço em 3 planos quais sejam o espaço, a metrópole e o lugar. O livro nos mostra em cada um de seus momentos que a espacialidade é uma vertente analítica a partir da qual se pode ler o conjunto da sociedade. O debate intelectual acerca da anulação do espaço com o avanço das técnicas é rebatido por Ana Fani na sua leitura geográfica. A análise e articulação de seus conceitos demonstram que o capital, com o objetivo de sua reprodução sempre ampliada, acelera o tempo através de técnicas que diminuem as distâncias entre os lugares. Esta aceleração do tempo, entretanto, não significa o fim do espaço. Ao contrário, ele se torna ainda mais estratégico. Nisto também tem um papel fundamental o Estado e suas instituições como planificador. O espaço ao mesmo tempo em que é um produto social também é um meio de controle, logo, de dominação e de poder, que produz uma hierarquia dos lugares centrada no processo de acumulação que produz a centralização do poder. O Estado produz o espaço regulador e ordenador, exercendo o controle do ponto de vista organizacional, administrativo, jurídico, fiscal e político. Ele reproduz a divisão centro-periferia com estratégias de poder fundadas no aparelho estatal que reproduzem espaços de confrontos e conflitos.

O lugar adquire fundamental importância na reprodução do capital a partir do momento em que as condições de reprodução variam no tempo em função do estágio do desenvolvimento técnico e científico aplicado à produção, o que produz mudanças espaciais dos valores de cada lugar na reprodução geral da sociedade. A diferenciação dos lugares, do ponto de vista de sua competitividade no espaço regional e nacional é a sua capacidade de concentrar infra-estrutura necessária ao desenvolvimento do processo de reprodução. O desenvolvimento técnico e científico aplicado à produção a partir de planos e programas do Estado, aliado ao desenvolvimento do mercado mundial e das empresas multinacionais estão longe de anularem o espaço, permitindo a sua mundialização. O que se mostra mais interessante é que na medida em que o Estado planifica e organiza seu território para o atendimento das demandas de competitividade global tal processo atenua suas fronteiras nacionais ao constatar-se que o local se torna global e que o global se localiza no lugar.

Toda a obra da autora é pautada pela teoria da produção e reprodução social do espaço. A cada novo trabalho realizado ganha mais consistência a análise do mundo hoje através da historicidade das práticas sociais. Este fundamento permite ainda que se anteveja as possibilidades futuras da vivência humana no lugar, com sua especificidade concreta onde se manifestam as desigualdades, articulado ao espaço mundial enquanto ordem distante. A contradição entre a produção socializada do espaço e a sua apropriação privada esclarece para a autora a natureza do processo de fragmentação do espaço expressa na divisão centro-periferia e no plano do vivido, no lugar onde se desenrola a vida humana. Ana Fani define o espaço geográfico como produto social, bem como meio e condição de reprodução da sociedade. No mundo moderno o espaço se reproduz a partir do processo de constituição da sociedade urbana apoiado no aprofundamento da divisão espacial do trabalho, na ampliação do mercado mundial, na eliminação das fronteiras entre os Estados, e na generalização do mundo da mercadoria. Na metrópole este processo é ainda mais evidente porque ela é a expressão da mundialidade na medida em que se conecta com um espaço mais amplo e desenvolve a função de articulação entre os lugares, bem como, na multiplicidade de suas práticas sociais que produz áreas com usos diferenciados manifestando uma morfologia espacial hierarquizada e estratificada como produto de uma morfologia social diferenciada. Daí resultam os problemas atuais postos pela urbanização. A fragmentação do espaço é produto da desigualdade social e é condição de reprodução desta desigualdade. A divisão centro-periferia expulsa para as extremidades das metrópoles aquela população que não pode ter acesso a moradia atendida dos serviços públicos que agregam valores aos espaços. O espaço é produto da sociedade, mas ele é apropriado privativamente por grupos beneficiados pelas estratégias de ordenação e planificação do Estado que servem à reprodução do capital. Produto de uma atividade dividida, a fragmentação ocorre enquanto o conflito entre o processo de produção socializado e sua apropriação privada aprofundam a divisão do espaço em parcelas cada vez menores comercializadas no mercado. Cada fragmento destina-se à uma apropriação: para o trabalho, para o lazer, para a moradia, para o consumo. Disto resulta o estranhamento do indivíduo que não se reconhece na cidade. Sua vida é atomizada em um espaço para cada atividade.

Mas ainda há uma resistência diante da construção desta identidade abstrata produzida pelo mundo moderno. São os “guetos urbanos” que constituem na metrópole o resíduo, a resistência, as áreas do desenvolvimento necessário de ações sociais que marcam a articulação entre o individual e o coletivo. Estes guetos mostram que a metrópole, apesar do processo de homogeneização das trocas, comporta várias temporalidades. A consciência da diferenciação de classes sociais aliada à uma identidade coletiva produz espaços determinados por qualidades específicas e marcados por relações sociais diferenciadas. Estes espaços não estão livres da dominação. Eles são vigiados e controlados. Também não se pode caracterizar como “guetos urbanos” apenas os espaços produzidos e vividos pelos pobres. Os guetos residenciais também assumem forma entre as parcelas mais ricas da hierarquia social. Há uma modo de vida próprio, além de um modo de pensar e sentir o espaço que cria uma “aparente” identidade entre os moradores dos bairros chamados nobres e condomínios fechados, conforme afirma a autora.
Mais uma contribuição importante para o entendimento do urbano presente nesta obra é a análise da rua. Para Ana Fani é aí que está o nível do vivido. Na ruas estão claras as formas de apropriação do lugar e da cidade e é onde afloram as diferenças e as contradições que permeiam a vida cotidiana, bem como as tendências de homogeneização e normatização impostas pela estratégia do poder que subordina o social. Podemos nos remeter à rua como a passagem das manifestações, ou ainda, como o lugar onde aflora o medo da violência porque na rua se tornam mais evidentes as marcas das diferenças sociais.

O debate da produção do não-lugar que, em nada tem a ver com a negação do espaço, evidencia o sentido oposto da construção da identidade e do sentimento de pertencimento ao lugar. Ana Fani sugere a idéia de infantilização do turista nos espaços normatizados para a acumulação do capital. Esta é mais uma das contradições do espaço no momento histórico atual. A indústria do turismo produziu na sua vertente extrema da acumulação ampliada do capital um mundo fictício onde o espaço se transforma em cenário e o sujeito, entregue às manipulações, desfruta a própria alienação. Estes espaços normatizados para o consumo de mercadorias e da sua própria imagem não se relacionam com o homem a não ser pela mediação da troca e, portanto, o princípio de lugar como identidade não se aplica.

No último capítulo podemos sentir que além de sua vivência acadêmica, com a definição de conceitos e de um plano teórico argumentado, a autora traz para o texto as suas impressões pessoais tiradas da sua própria vida cotidiana. Sua contrariedade com as “situações bem urbanas” e “modernas” exemplifica os problemas das relações na metrópole. Ana Fani chama de uma “nova urbanidade” estas relações sociais produzidas na metrópole, onde de um lado o objeto triunfa sobre o sujeito e de outro há a exacerbação do individualismo. A metrópole comporta um modo de vida urbano, um sistema de objetos e um sistema de valores que definem e produzem comportamentos. Mas essa maneira de viver não revela, em um primeiro momento, os anseios de um retorno às tradicionais relações sociais, do encontro e do reencontro entre as pessoas. Apesar do cotidiano atomizado por um espaço normatizado, o homem ainda busca na metrópole a sua felicidade.
O que este livro nos oferece é uma forma de análise da realidade social por meio do espaço geográfico. É através de uma leitura crítica das condições espaciais que podemos desvendar a produção e a reprodução das relações sociais em um mundo onde as trocas se generalizaram em detrimento das identidades locais que ainda se mostram como resistência à homogeneização.
 

*Tatiane Marina Pinto de Godoy, mestre e doutoranda em Geografia pela UNESP/Rio Claro. Membro do Observatório Territorial CEA/UNESP e do GESP – Grupo de Estudos sobre São Paulo – LABUR/USP.