O Espaço Urbano. Novos Escritos Sobre a Cidade.

Sávio Augusto de Freitas Miele*

 

Resenha do livro: CARLOS, Ana Fani Alessandri. Espaço Urbano. São Paulo: Labur Edições, 2007, 184 p.
(baixe o livro)

 

É a partir de suas pesquisas sobre a metrópole de São Paulo que Ana Fani Alessandri Carlos constrói seu livro “O Espaço Urbano. Novos Escritos Sobre a Cidade”. Esta obra possui um caráter eminentemente metodológico, trazendo à tona um esforço teórico capaz de desvendar conteúdos e processos fundantes da sociedade urbana a partir de uma articulação entre os três níveis de análise da realidade: o econômico, o político e o social. São textos que revelam os níveis e planos analíticos a partir dos quais a autora tem construído sua geografia urbana, uma forma possível de pensar a cidade e o urbano. Este caminho analítico está fundamentado, principalmente, nas obras de Marx e Henri Lefebvre.

A preocupação de uma articulação entre teoria e prática atravessa todos os capítulos que compõem o livro. Trata-se da idéia de que os conceitos e noções surgem da prática humana, do movimento da realidade; em outras palavras, a ciência surge da prática, da preocupação com o real com vistas para o possível. É por meio do esforço de reflexão sobre a realidade urbana da metrópole paulistana que são criados os nexos do pensamento capazes de elucidar as contradições, revelando assim um caminho possível para compreender a sociedade urbana hoje.

A espacialidade das relações sociais ganha conteúdo ao pensar a vida dos habitantes da cidade. A partir de uma idéia de Henri Lefebvre segundo a qual as relações sociais são relações espaciais, a autora leva às últimas conseqüências sua idéia de que o espaço é condição, meio e produto da reprodução da vida; bem como do modo de produção capitalista.

A motivação central que leva a esses novos escritos é pôr em evidência que hoje vivemos e pensamos um novo momento, aquele no qual uma nova problemática se coloca, a problemática urbana. O processo de urbanização deixa de ser induzido pela industrialização que comandava as relações espaços-temporais da sociedade e passa a ser o indutor das práticas humanas. Então, mais do que revelar essa nova problemática é construir um caminho fértil para compreensão da questão urbana hoje, que nos põe frente às contradições da sociedade atual. É importante compreender que nossa época traz uma problemática nova, que vai além de considerar somente a cidade, mas refletir sobre o urbano real e concreto, que também é virtualidade e projeto.

É no movimento de desenvolvimento da sociedade urbana, no plano do mundial, que são retomadas as noções de produção e reprodução, centrais na elaboração deste trabalho. Para além da produção de mercadorias, de coisas, a noção de produção diz respeito à produção do homem, à produção de relações sociais e, nesse sentido torna-se uma noção filosófica. Segundo a autora, a produção também é reprodução das relações sociais, acrescentado algo novo à produção. Através da discussão da noção de reprodução e de sua superação é possível compreender o momento no qual o espaço passa a ser fundamental para a reprodução, ou seja, o processo de reprodução se realizaria pela produção/reprodução do espaço, evidenciando a espacialidade num movimento de uma dialética do tempo para uma dialética do espaço. Esse momento é caracterizado como transhistórico.

O raciocínio que toma o espaço como elemento definidor deste período e então central para a reprodução do modo de produção é fundamental nas pesquisas de Carlos sobre a reprodução do espaço em São Paulo, principalmente em seus estudos sobre uma nova relação estado-espaço e a articulação com a realização de uma economia financeirizada e de serviços modernos que precisam de um novo espaço para a realização de suas atividades. Por meio desse estudo, o espaço aparece como uma nova raridade. Essas velozes transformações, empreendidas por meio de uma aliança entre a classe econômica dominante e o Estado, são percebidas no plano da paisagem e da forma da cidade, bem como sentidas na vida cotidiana dos habitantes desses lugares. É nesse sentido que a vida cotidiana passa a ter centralidade nesses escritos, pois ela aponta o modo como se dá a reprodução hoje, revelando uma nova relação espaço-tempo. É por meio da análise da vida cotidiana que se observa a deterioração da vida urbana, abrindo a possibilidade de Carlos construir noções como a de espaço amnésico e tempo efêmero e da cidade produzida enquanto exterioridade em relação aos seus habitantes. Ao desenvolver essas noções recupera o uso como modos de apropriação do espaço, da realização de uma prática sócio-espacial que guarda uma dimensão prático-sensível da vida na cidade.

A análise urbana apoiada em estudos de obras literárias, levando às últimas conseqüências a noção de produção e reprodução, permite a compreensão da dimensão humana que a cidade contém. São dois momentos em que a espacialidade ganha potência: no texto em que a literatura é analisada por meio da perspectiva geográfica e outro no qual a vida cotidiana aparece com sua potência analítica. Aqui a realização da vida na cidade se mostra em todas as suas dimensões, ou seja, econômica, política e social. A incursão na relação entre geografia e literatura abre a perspectiva de entender a cidade em sua profundidade; é apresentar a cidade como obra da civilização. Esses estudos permitem a construção de uma crítica ao modo como a cidade vem sendo produzida e pensada (tanto pelos planejadores e urbanistas quanto por intelectuais) abrindo o pensamento para o devir. São textos que em conjunto ultrapassa o estudo das funções das cidades, da cidade passível de planejamento para apontar os sentidos mais profundos da cidade que se transforma em metrópole.

A reflexão aberta para o possível/impossível coloca o urbano como realidade e projeto. A relação contraditória entre produção social da cidade e sua apropriação privada cria um desafio à autora que busca apontar caminhos para a construção de um direito à cidade para além daquele do direito à propriedade privada e o acesso aos equipamentos urbanos. O direito à cidade aqui aparece como outra via, outra possibilidade, que vem da vida cotidiana, que nasce da prática. A metageografia surge como possibilidade, no plano teórico-analítico, de realizar uma crítica ao modo como a geografia vem construindo um conhecimento sobre a cidade, bem como abrindo possibilidade para um pensamento que vá na direção de superar as análises fragmentadas, tendo como orientação a superação das ciências parcelares. Trata-se de um desafio que está em construção por meio de um conhecimento e de uma prática, de um pensamento /ação, orientados pelos estudos apresentados nesta obra.

 

*Sávio Augusto Miele, mestre e doutorando em Geografia pela USP. Membro do GESP – Grupo de Estudos sobre São Paulo – LABUR/USP.