A Metrópole e os lugares de memória operária: o sentido político da permanência

Texto apresentado no SILACC 2010 – Simpósio Ibero Americano “Cidade e Cultura: novas espacialidades e territorialidades urbanas”
 

Resumo:
Ligados a um modo de vida e uma cultura industrial não tão distante, mas em profunda modificação no presente, os lugares de memória operária podem ser definidos como pontos onde se cristaliza ou se refugia a memória coletiva, em um contexto de aceleração da história e de consciência de mudanças e rupturas. Antigas vilas operárias, conjuntos habitacionais, espaços de luta do trabalhador na cidade, edificações fabris carregadas de um significado simbólico ligado ao cotidiano e às condições de vida do operariado; são exemplos do que pode ser interpretado como lugares da memória operária na metrópole. Partimos da hipótese de que estes se constituem a partir da mudança dos conteúdos da urbanização na metrópole, que transformam as práticas socioespaciais naqueles espaços onde, antes, a indústria era o eixo organizador da vida social e a principal referência espacial. Os lugares de memória operária emergem num contexto em que a fábrica, o trabalho e o próprio trabalhador se transformam mundialmente. Constituem-se, assim, na passagem entre duas lógicas orientadoras da produção espacial: a de uma urbanização centrada na indústria e a da reestruturação da metrópole, a partir da dispersão espacial e de uma economia fundada em novos setores de atividade. O objetivo é refletir sobre a constituição dos lugares de memória operária para pensar o sentido político de sua permanência na metrópole, tendo como recorte espacial a região do ABC paulista, o primeiro e mais importante parque industrial do entorno da capital.

Palavras-chave: operariado, memória coletiva, reestruturação da metrópole.

 

1. Os lugares de memória operária

Antigas vilas operárias construídas para abrigar os trabalhadores estrategicamente próximos aos seus locais de trabalho; conjuntos habitacionais produzidos na era Vargas, a cargo dos Institutos de Aposentadorias e Pensões dos Industriários (IAPIs) e que representam iniciativas pioneiras, por parte do Estado, na esfera da produção de moradia popular; espaços de luta do trabalhador na cidade, palco de manifestações públicas que marcaram a cena política nacional; antigas edificações fabris  carregadas de um significado simbólico ligado ao cotidiano e às condições de vida dos trabalhadores operários; todos esses são exemplos  daquilo que pode ser interpretado como os lugares da memória operária na metrópole paulista.
Podem ser classificados em diferentes categorias, tais como (RÉBÉRIOUX, M. 1992):
- lugares de trabalho, os quais não corresponde necessariamente ao espaço global da fábrica; ao contrário, relacionam-se mais ao espaço da oficina ou galpão onde o operário trabalha e encontra os mesmos companheiros;
- lugares de solidariedade e sociabilidade, como os cafés da Paris do final do século XIX, onde se bebia, se fumava, se jogava e se constituíram inúmeras associações operárias. No Brasil, os lugares de encontro ao final do expediente e nos finais de semana, os bares, os campos de futebol de várzea;
- lugares simbólicos, carregados de memória militante e consciente, no sentido da lembrança que luta contra a alienação da vida operária, lugares que simbolizam esta luta, suas perdas e vitórias; como em Paris, o Muro dos Federados, ligado aos eventos da Comuna de Paris, o lugar por excelência da memória militante, segundo a autora.
Estes espaços carregam uma dimensão historiográfica, pois constituem matéria para a construção da história, mas, sobretudo, uma dimensão política, já que a memória pode ser compreendida como um conjunto de estratégias, uma entrada disponível para transformar a realidade (NORA,P.,1997). Os lugares de memória, conceito formulado pelo autor, quando inseridos num discurso patrimonial de identidade, servem a busca de um sentido social, uma maneira de organizar nossa relação com o passado, em um contexto histórico de mundialização da economia e da cultura e de mobilidade generalizada.
A mudança dos conteúdos da urbanização na metrópole, a qual transforma as práticas sócio-espaciais, constitui o pano de fundo da discussão e coloca a importância dos lugares de memória operária. Estes se constituem como questão emergente no momento de passagem de uma prática sócio-espacial fundamentada na industrialização, para outra experiência de vida urbana desintegradora em sua essência e fragmentária, na qual uma nova pobreza se constitui não apenas pela exploração da classe trabalhadora, mas agora também pela expropriação produtiva periódica de levas de trabalhadores, a chamada urbanização crítica (DAMIANI, A., 2004).
Nas práticas socioespaciais anteriores, a fábrica aparece como a organizadora da vida social e a principal referência espacial: o elemento que ancora o lugar da memória operária, em torno da qual estabelece-se a vida do operário, em um cotidiano marcado pelo tempo do relógio, pelo apito de entrada e saída que regula o movimento no bairro e a circulação, pelas condições do trabalho parcelar e repetitivo que aliena, mas que não encobre a possibilidade de luta, de resistência.
Parte-se da concepção de que o lugar, como um conceito fundamental na análise geográfica, não diz respeito apenas à escala local, a da reprodução da vida humana e a do cotidiano, ele não representa um fato isolado ou um ente dotado de autonomia, ao contrário, apresenta-se como produto contraditório da relação estabelecida com o mundial. Assim sendo, o lugar aparece como a síntese entre essas duas ordens: a distante, que corresponde ao plano do mundial e da sociedade urbana em constituição; e a ordem próxima, a dimensão do real, do concreto e da vida cotidiana (CARLOS, A.,1996, p. 29).
O lugar, como dimensão concreta e real do espaço geográfico, é produto de uma construção social cotidiana, que se dá ao mesmo tempo em que a sociedade produz sua vida, relações sociais, cultura, valores e sua própria história humana. Mas, ao mesmo tempo em que as particularidades do lugar são produto dos ritmos de vida, das formas de apropriação, elas também revelam as contingências do mundial, um conteúdo que deve ser compreendido a partir de uma totalidade que é a da divisão espacial do trabalho, que impõe funções e circunstâncias à vida cotidiana.
Partindo-se desse pressuposto teórico, a compreensão dos lugares da memória operária na metrópole paulista, envolve pensar, em primeira instância, na ordem local, como dimensão na qual se criam os laços de identidade e de solidariedade, o plano em que se dá a vida cotidiana marcada pelo ritmo da fábrica e pelas lutas e resistência ao processo de alienação no trabalho.
O lugar de memória operária enfatiza a importância dessa dimensão geográfica: importa entender de que forma se constitui a memória coletiva desse grupo social, inscrita em um fragmento do espaço concreto, que papel as imagens espaciais desempenham na memória coletiva (HALBAWACHS, M., 2006). “Assim, cada sociedade recorta o espaço à sua maneira, mas de uma vez por todas ou sempre segundo as mesmas linhas, de maneira a constituir um contexto fixo em que ela encerra e encontra suas lembranças...”(ibid, p.188).
O elemento central neste plano de análise da ordem próxima é a fábrica, em torno da qual são tecidas as relações cotidianas de trabalho e de vida social, portanto, que se estabelece como o esteio da memória social. A produção comanda o ritmo da vida no bairro, dentro e fora do espaço fabril: a vida familiar e o lazer se dão nas pequenas frestas da jornada de trabalho.
O lugar da memória operária sinaliza, assim, de um lado os limites impostos pelo mundo do trabalho fabril, as restrições do tempo da vida e do lazer, o empobrecimento das relações sociais, o confinamento das possibilidades de acesso à cidade; no entanto, de outro lado, testemunha um compartilhamento de experiências vividas, de resistências e de luta, de sofrimentos e esperanças, a unidade entorno da dificuldade, as solidariedades diante das dificuldades.
Não obstante, não se trata de um mundo arrasado, sem possibilidades de realização do encontro, de resistências quanto à alienação do processo de trabalho (PÁDUA, 2007). O modo de vida coisifica e aliena o trabalhador, mas há, também, o seu contrário, a negação da dominação por meio da consciência de si e do processo. [...] o espaço industrial se revela como espaço de apropriação e criação de sociabilidades que se produzem inesperadamente, que escapam ao controle exercido pela indústria, que aparentemente domina completamente as esferas da vida (ibid., p.123).
Apesar de sua importância hoje, os lugares da memória operária nem ao menos são considerados objeto de políticas de patrimonialização, já que não se prestam ao consumo turístico, nem a animação cultural, que são os objetivos perseguidos na contemporaneidade, tidos como os que viabilizam economicamente a proteção do patrimônio cultural urbano.
Apesar de terem sido inseridos no debate conceitual do patrimônio desde os anos 1980, inclusive na França, as ações públicas de proteção do patrimônio no Brasil não apresentam resultados objetivos de inserção desta memória operária nas listas patrimoniais (RÉBERIOUX, 1992). Quando muito, aparece o patrimônio industrial, mas este é associado às fábricas, galpões industriais, ferrovias e maquinário, enfim principalmente aos meios de produção. No entanto, as políticas culturais esquecem que o patrimônio industrial é feito, também, daqueles bens que remetem a memória do trabalho vivo, trabalho humano criador de riqueza material. Ocultam, portanto, aquilo que testemunha a memória operária: os espaços de morar, da luta e resistência, da vida cotidiana do trabalhador, sujeito coletivo que, ainda, permanece ausente na memória nacional.

2. O operariado e a memória na região do ABC paulista

Para compreender o significado destes lugares de memória operária na metrópole, a partir de um recorte espacial naquele espaço que se constituiu, desde o final do século XIX, como a mais importante zona industrial dos arredores paulistanos, significa buscar sua raiz na construção de uma identidade proletária no subúrbio. “Acontece que só existe passado proletário quando compartilhado” (RÉBÉRIOUX, M., 1992, p. 55).
Na história do subúrbio encontra-se o ponto de partida da formação da classe operária: no trabalho livre, do colono agricultor e imigrante, em suas adversidades e nos limites impostos à vida material, da impossibilidade de reprodução de seu modo de vida rural, surge o operário no ABC, ligado a uma indústria que não nasceu concentrada na cidade de São Paulo, mas dispersa em um amplo espaço urbano e rural, que inclui o subúrbio (MARTINS, J.S., 2002).
Este trabalhador livre é o agricultor, em grande parte, de origem italiana, vindo para formar os núcleos coloniais de São Caetano e de São Bernardo, no último quartel do século XIX. A vida nos núcleos foi de muito trabalho e sacrifício, abandono por parte das autoridades, fome, doenças e miséria. Tensões e conflitos mostraram-se comuns nestas terras, pela falta de pagamento de salários, de condição de moradia, de ruas carroçáveis, de médico, igreja e a desilusão dos colonos em face de má qualidade das terras dos núcleos (ALVES, A., 2001).
A condição operária surge deste processo que, ao limitar a sua continuidade enquanto tal, expropria o trabalhador livre do subúrbio, transformando-o em operário para uma indústria nascente. As indústrias que chegam ao subúrbio, no final do século XIX, encontram farta mão de obra, representada pelos colonos estrangeiros e seus descendentes, num cenário de crise agrícola e de pressão demográfica sobre o território.
Ao mesmo tempo, a sua consciência operária também foi sendo construída pelas mesmas circunstâncias do trabalho no subúrbio, mas agora a partir de uma atividade fabril. Salários baixos, longas jornadas de trabalho, trabalho infantil, condições insalubres, foram gestando as primeiras formas de organização operária. Em 1902 o ABC já testemunhava a sua primeira greve de trabalhadores, na Tecelagem Silva, Seabra & Cia, a qual se seguiram outros tantos movimentos de trabalhadores e organização das primeiras iniciativas sindicais: em São Bernardo, a Liga Operária (1907), o Sindicato de Marceneiros e Tecelões (1907) e a União dos Operários das Fábricas de Tecidos (1913).
A diversificação do parque industrial na região do ABC, nas primeiras décadas do século XX, com a chegada de grandes e importantes indústrias como a Pirelli, a Rhodia, a Laminação Nacional de Metais, entre outras tantas, demandou ampliação do mercado de trabalho, neste momento abastecido por forte movimento migratório campo-cidade e de caráter inter-regional. Ao mesmo tempo, a atividade sindical se ampliou e com ela os movimentos grevistas, fortalecendo uma identidade operária na região ao ponto que, em 1947, pela primeira vez no país, o município de Santo André consegue eleger um prefeito comunista, o operário e sindicalista Armando Mazzo. Além dele, outros 13 vereadores, os quais, por uma manobra política, não chegaram a tomar posse de seus cargos.
A semente de uma identidade operária estava assim constituída, testemunhada hoje em lugares que estão desaparecendo na paisagem urbana em função de processos de valorização do espaço; perdem-se as vilas operárias, importantes galpões industriais, sedes das associações operárias. Alguns lugares permanecem, testemunhando alguns destes processos, como o Conjunto Habitacional de Vila Guiomar, projeto de 1937, do arquiteto Carlos Frederico Ferreira, considerado um dos marcos da produção de habitação popular em São Paulo, de concepção modernista. O conjunto pode ser compreendido na lógica do papel do Estado como garantidor das condições de reprodução da força de trabalho, em um momento de grande expansão industrial no país. A concepção de uma nova forma de moradia operária, sob princípios da arquitetura racionalista, mostra a tentativa de imposição de um modo de vida, a partir da visão do ordenamento do espaço. No entanto, há um ganho social no projeto do Conjunto de Vila Guiomar, representado pela generosidade dos espaços coletivos, das áreas verdes e dos lugares de recreação e que contrastam com as atuais formas de habitação popular produzidas pelo Estado.
Mas dos lugares de memória operária que podem ser encontrados hoje na região, um em particular se destaca, pela sua importância na construção e fortalecimento de uma identidade operária: o Estádio da Vila Euclides, em São Bernardo do Campo.
Ele marca um período mais contemporâneo na formação desta identidade, ligada a atuação de um forte movimento operário, ao final da década de 1970, na região do ABC paulista. As manifestações grevistas que tomaram a cena pública do país em um momento de ditadura e repressão política, firmaram a região como o locus da identidade operária moderna.

2.1 – Estádio da Vila Euclides: a casa do trabalhador

Nos anos 1970, a combinação de uma política econômica vigente que apostava na redução do poder de compra dos trabalhadores para conter os índices inflacionários, a coação nas fábricas, a inexistência das liberdades fundamentais e a forte repressão do Estado que se abatia sobre os movimentos sociais, todos estes fatores associados a uma vida na cidade sem dignidade, levaram o trabalhador, ao reconhecimento de si no outro, à constituição de sua identidade e ao reconhecimento de sua força e de sua capacidade de luta, que não se restringiu ao ambiente da fábrica, mas que se pulverizou pelos bairros, igrejas, escolas, enfim, pelas cidades do ABC paulista.
Apesar das condições impostas pela ditadura política que vigorava neste momento, o espaço - a cidade - transmutou-se em campo de lutas no qual milhares de corpos dominaram, ocuparam e resistiram, dando visibilidade a uma organização cotidiana. O Estádio de Vila Euclides, em São Bernardo do Campo, se constitui no principal dos marcos espaciais deste processo, tomado que foi pelo operariado, por meio da resistência e da luta, as quais se tornaram uma referência do movimento operário nacional.
Neste sentido, ele é suporte de memória do trabalhador, eleito pela via da luta operária, uma memória que envolve pelo menos três dimensões: de um lado a dimensão social, ou seja, a da construção da identidade deste grupo social, a partir de vivências e práticas cotidianas no processo de trabalho; por outro lado, a dimensão política, dada pelo fato do movimento dos trabalhadores ter alcançado repercussão nacional e internacional, transformando-se em fato político do momento; e, por fim, a dimensão da cidadania, pois o movimento apontou para a reapropriação da cidade como espaço de luta.
Curiosamente, aquele que foi o principal palco do movimento operário contestador, do final da década de 1970, tem suas origens ligadas ao próprio processo de industrialização da região do ABC e, portanto, do estado de São Paulo. O estádio foi construído como parte integrante do espaço fabril de uma das mais modernas indústrias têxteis da região do ABC, a Sociedade Elni de Produtos Manufaturados Ltda. Esta empresa é representativa de um momento de transformação profunda do caráter da industrialização pelo qual o país passou na metade do século XX e do novo papel conferido aquela São Bernardo do Campo, o de moderno parque industrial do país, concentrando investimentos de capital nacional e internacional.
A empresa pode ser considerada como parte deste novo momento da industrialização brasileira e, conseqüentemente, da relação que se estabelecia entre a grande fábrica e a cidade como os cenários preferenciais de um país em transformação. Assim se entende o uso de novas técnicas e materiais de construção na edificação fabril, a adoção de um partido arquitetônico moderno e uma nova concepção do que seria aquele espaço industrial. A Elni inovou por conceber junto ao seu espaço fabril uma praça de esportes com campo de futebol e quadra de esportes para lazer esportivo de seus funcionários dando origem ao estádio que mais tarde será conhecido como Vila Euclides. Como parte integrante do terreno da tecelagem Elni, o estádio testemunha as mudanças marcantes para a cidade no que diz respeito à concepção do espaço industrial, para além da unidade fabril propriamente dita. Ao contemplar funções outras, no caso a de lazer esportivo, demonstra, no agenciamento do espaço, as estratégias empregadas pelo capital para controle de sua força de trabalho.
As novas funções que o espaço industrial vai assimilando no século XX, tais como moradia, lazer, serviços médicos, aparecem como resposta das empresas frente a problemas de ordem técnica-econômica, mas também, social, principalmente frente ao crescente movimento operário reivindicando melhores condições de trabalho e vida (MOREIRA, 2007). De acordo com a autora, embora signifiquem benefícios, são ainda formas de controle total da vida do operariado.
Para os empresários, assim como para as instituições públicas e religiosas, o tempo livre do operariado deveria ser mais bem empregado, evitando-se os maus hábitos, os vícios e atividades improdutivas em geral, que poderiam corromper a moral e a disciplina do trabalho fabril (DECCA, 1989). Trata-se de um momento em que é necessário criar um novo trabalhador, necessário a expansão do capitalismo industrial no país. Estado e capital unem-se para promover ações voltadas a educação, esporte e lazer, patrocinando um amplo domínio sobre todos os campos da vida social.
Assim sendo, desde as primeiras décadas do século XX, iniciativas foram implementadas para tornar o lazer do operário mais “produtível e saudável” e o esporte e, particularmente, o futebol, têm papel fundamental neste momento. Isso porque o futebol, como esporte coletivo, reforça a solidariedade e a cooperação entre os operários, valores necessários à produção industrial. Além disso, ao ser patrocinado pela empresa, auxilia na construção de uma identidade em torno da fábrica e do time da fábrica, combatendo uma possível identidade da classe operária a partir da luta e da reivindicação.
No entanto, concebido como parte de um programa fabril, no qual o esporte seria peça essencial para controlar os trabalhadores e garantir, assim, a disciplina necessária à linha de produção moderna e selar a solidariedade e a identidade com a marca da empresa, o Estádio da Vila Euclides testemunha outra trajetória a partir de finais da década de 1970: o lugar da tomada da consciência e da identidade de classe. De lugar concebido para controlar o trabalhador, tornou-se o lugar da afirmação de sua liberdade e da sua constituição como sujeito coletivo, capaz de fazer sua própria história.
Um lugar, acima de tudo, estratégico na lógica da luta operária (CAMARGO, N., 2003). De acordo com a autora, como o destino do movimento era decidido coletivamente, por meio de grandes assembléias, contrariando a prática sindical de então, era necessário um lugar capaz de receber um contingente de trabalhadores que aumentava a cada reunião e, ao mesmo tempo, que tivesse uma localização central, ligado por transporte coletivo para facilitar acesso a todos.
Além disso, podemos associar a idéia de que sua disposição espacial interna permitia que os presentes se concentrassem e tivessem uma visão do conjunto, quer seja, estando nas arquibancadas, quer seja, no gramado do campo de futebol. É possível pensarmos que o formato arquitetônico de um estádio pode potencializar os gritos de manifestação ou saudação efetuados coletivamente, tal qual, os fazem as torcidas de futebol. E, particularmente naquele momento de luta, fazendo uma analogia podemos dizer que todos não apenas torciam pelo “mesmo time” mas eram ao mesmo tempo “os jogadores”. (ibid.,p. 118).

Assim sendo, a arquitetura do estádio, simples e desprovida de sentido estético, deve, antes de tudo, ser vista como parte da lógica da localização da luta, de uma geografia da luta operária que elege determinados lugares na cidade, que se tornam símbolos do movimento. Uma arquitetura que contém o sentido contraditório de ter sido pensada como parte da lógica industrial, em um projeto de controle do trabalhador, mas que foi, ao mesmo tempo, tornando-se o elemento determinante para se transformar no lugar da luta.
É no Estádio da Vila Euclides que a luta se amplia da esfera do operariado fabril para tornar-se uma autêntica demanda social, um lugar onde se fez história. O impacto social das grandes assembléias de metalúrgicos, com os habituais mecanismos de repressão política que se abateram sobre eles, pode trazer para as famosas manifestações do 1o de maio, vários segmentos sociais, de políticos de oposição, estudantes, professores, atraídos pelo desejo de manifestação pública de mudança.
O estádio tornou-se referência para toda uma geração que viveu naqueles tempos difíceis, mesmo para os mais jovens; uma referência de que algo novo estava acontecendo ali, com potência capaz de levar às mudanças tão esperadas.

[...] no ano de 1980, quando fui com um grupo de seis ou sete amigos à celebração do dia 1o de maio em São Bernardo do Campo. Éramos todos estudantes em Osasco, entre 15 e 17 anos e tínhamos montado uma espécie de ‘comitê de solidariedade à greve dos metalúrgicos’ na nossa escola. Ir àquela manifestação em São Bernardo, significava para nós uma chance ímpar de protestar, o que nos animava ardorosamente [...] No caminho já observávamos uma passeata que mal víamos o começo ou fim, apenas descemos do veículo e juntamo-nos à multidão que desembocou no estádio de Vila Euclides. Lá, repleto de pessoas, ecoava gritos e canções: ‘Abaixo a ditadura!, Greve geral derruba o general!, Chora Figueiredo, Figueiredo chora, chora Figueiredo que chegou a sua hora”... (CAMARGO, N., 2003, p.1)
3. Os espaços liminares e a memória operária

Que a mundialização e as novas necessidades do capitalismo produziram a aceleração do tempo e da história parece ser um consenso, tanto no debate acadêmico, como na percepção da vida prática e concreta humana, produzindo a compreensão de que os processos são cada vez mais efêmeros, que as relações são cada vez mais flexíveis e de que a mobilidade é uma incontingência.
No entanto, quando se trata da memória coletiva, inscrita e retida nos lugares da cidade, ela aparece como produto de um outro tempo, mais longo: o tempo necessário para consolidar os laços de vizinhança, estabelecer relações, viver o bairro, ver as gerações passarem. Os lugares se constroem na relação de todos os dias, da continuidade, nos modos de uso, nas circunstâncias mais banais da vida. É o lugar como extensão do corpo e da nossa vida (CARLOS, A.,1996).
Assim sendo, as conseqüências destas novas condições de fluidez e de mobilidade se dão, também, no plano dos lugares da metrópole e produzem um constante estranhamento: a dispersão espacial da indústria cria grandes espaços vazios de uso, bairros operários se transformam, antigos moradores são obrigados a se mudar pressionados por reformulações urbanísticas, processos de revalorização e de enobrecimento. A cidade do zoneamento funcional é substituída por um mosaico de usos, misturando novos produtos residenciais, atividades comerciais e de serviços de ponta.
As transformações pelas quais a metrópole paulista vem passando há pelo menos duas décadas, com a reestruturação industrial que leva as fábricas cada vez mais para as suas bordas, produzem conseqüências diretas nos antigos bairros industriais e de população operária, apagando a memória destes processos.
A compreensão deste processo passa pelo conceito de reprodução do urbano e da metrópole, pois implica pensar, de um lado, na articulação dos momentos parcelares da produção, consumo, circulação e troca, reconstituindo a totalidade do processo (CARLOS, 1994, 2001). Por outro lado, a reprodução tem um caráter não apenas de continuidade do processo, mas da sua valorização, ou seja, da acumulação em bases ampliadas.
Nesse sentido, o urbano se explica hoje em um contexto de transformações do capitalismo, no qual o espaço geográfico tem um papel fundamental. A passagem do capitalismo industrial para um novo regime de acumulação, evidencia que a valorização do capital adquiriu uma independência em relação à esfera da produção material, uma economia sob bases cada vez mais financeirizadas (CHESNAIS, 1996). Nessa nova economia, a busca pela redução dos custos de produção e elevação das taxas de lucro estabelece formas cada vez mais agressivas de exploração do trabalho, incluindo-se ai, a mobilidade de empresas em busca de mão de obra barata (ANTUNES, 1999).
Sob essas novas condições de reestruturação do capitalismo, a metrópole como a forma espacial símbolo da economia de mercado testemunha, também, processos de reestruturação urbana. As transformações na cidade podem ser explicadas, assim, como momento do próprio processo de metamorfose da produção capitalista.
A reestruturação urbana-metropolitana traz o significado da chamada “desindustrialização” ou da dispersão industrial, resultado do abandono de antigos parques industriais. Na metrópole paulista as indústrias se transferem para os limites deste território, mantendo seus escritórios na área central, reforçando o papel da metrópole como centro de comando e gestão, ao invés de enfraquecê-la (LENCIONE, 1994, 2003).
O abandono das áreas industriais constitui, assim, grandes vazios urbanos, terrenos sem uso, mas com potencial para revalorização e reinserção no mercado de terras. Por meio de um urbanismo de mercado essas áreas são incorporadas novamente aos circuitos de valorização, sob os auspícios do Estado, lançando mão de políticas de gentrificação ou de enobrecimento, de desregulamentação de legislação urbanística ou com a instalação de modernas infra-estruturas.
Constituem-se, assim, os espaços liminares que opõem, no urbano, as novas formas em contraste com aquelas que insistem em permanecer, como é o caso dos lugares de memória operária. Estes podem ser interpretados como o vernacular que permanece resistindo à imposição de uma paisagem do poder, aquela da expansão dos negócios e do urbanismo empresarial (ZUKIN, 2000).
Por outro lado, a reestruturação da indústria produz mudanças no mundo do trabalho, levando a sua precarização ou ao enxugamento dos empregos, substituídos pelas possibilidades da informática, resultando na formação de massas de novos desempregados nas cidades, em constante migração, para cada vez mais longe nas periferias urbanas, em busca de moradia mais barata.
A mudança do conteúdo da urbanização na metrópole, cuja natureza do processo é explicada pelas novas necessidades da reestruturação do capital que dispersa espacialmente a indústria, implica na passagem para uma nova prática sócio-espacial que é, em essência, desintegradora, uma vez que desorienta a partir da saída daquele que era o seu elemento fundante.
As transformações no mundo do trabalho e, conseqüentemente, no espaço urbano, criam uma nova prática sócio-espacial homogeneizante e empobrecida de relações. Não se trata somente da perda do emprego industrial, ou da sua mudança de caráter para formas mais agressivas de exploração do trabalho, trata-se, também, da destituição produtiva do trabalhador, de sua expropriação e, conseqüentemente, da desintegração da vida cotidiana centrada na fábrica como o lugar de referência.

4. Considerações finais: operariado e memória, o sentido político da permanência

Hoje, num cenário em que as mudanças no mundo do trabalho repercutem na constituição da classe trabalhadora fragmentando-a cada vez mais, dividindo-a em setores qualificados e sem qualquer qualificação, entre emprego formal e o informal/precarizado faz-se necessário “soldar os laços de pertencimento de classe existentes entre os diferentes segmentos que compreendem o mundo do trabalho” (ANTUNES, R., 2001, p. 24).
A memória coletiva coloca-se como um instrumento fundamental para isso. Ela é um cimento indispensável à sobrevivência das sociedades e elemento de coesão que garante a permanência e a elaboração de um futuro (SANTOS, 2002). Nesse sentido, pode-se concluir que o esquecimento produzido em relação aos lugares da memória operária tem, antes de tudo, um significado político, de contribuir para a alienação do trabalhador que não se reconhece mais como classe, colaborando assim para a reprodução das relações sociais de produção e das relações de dominação.
Em um cenário urbano-metropolitano de grandes transformações incluindo as do mundo do trabalho, os lugares da memória operária tornam-se espaços residuais (SEABRA, 2004). São fragmentos de velhos bairros, que não se apresentam como funcionais, ao contrário, tornam-se obstáculo à mobilidade e a circulação urbana, vez por outra arrasados por um urbanismo de mercado. Segundo a autora, nesses lugares “[...] de alguma forma permanece retida a história inteira, vivida e experimentada com sua riqueza e pobreza, com seus impasses e contradições, porque eles são acumulação de tempos sociais e históricos.” (SEABRA, ibid, p. 185/186).
Os lugares da memória operária guardam, assim, um sentido político ao permanecerem e resistirem dentro da metrópole à tendência de homogeneização imposta por uma urbanização calcada no mercado imobiliário de novos produtos, que vendem um novo modo de vida antiurbano, de negação da cidade, de distanciamento social e de confinamento de seus moradores no interior de muros e somente entre os iguais.
A metrópole oprime quando destrói os apoios da memória coletiva, sufoca a lembrança pelo desaparecimento dos seus suportes materiais (MATOS, 1982). Nesta perspectiva, os lugares de memória operária seriam, espécies de ruínas, que resistem ao poder destruidor dos interesses do mercado.

Nesse sentido, a anamnese citadina é o projeto de desalienação social, que recoloca o ‘sentimento de humanidade’ como determinante do espaço vivido, contra a burocratização tecnocrática do espaço, a fim de traçar o destino que ainda resta ao indivíduo. (Ibid., 1982, p. 52).

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