O lugar do negativo na periferia da metrópole

Danilo Volochko

Resenha do livro: A produção do lugar na periferia da metrópole paulistana  - Fabiana Ribeiro .

A análise desenvolvida por Fabiana Ribeiro em seu livro “A produção do lugar na periferia da metrópole paulistana” toma como ponto de partida a necessidade metodológica de se pensar o negativo da sociedade contemporânea que é produzido e reproduzido sob os ditames lógicos da economia hegemônica que açambarca a urbanização em sua totalidade: centro, periferias, centralidades, relações sociais, instituições. Sua análise parte do resultado – que é também tendência e hipótese para a autora – da ampliação das negatividades do urbano que produzem a degradação da vida cotidiana e o empobrecimento das possibilidades de apropriação dos lugares na cidade. Tais negatividades redutoras do uso se alicerçam em processos de dominação/normatização econômica e política do espaço social, sendo que deste último  emergem práticas de transgressão e resistência que se colocam como condição para a sobrevivência e que permitem à autora trabalhar teoricamente com uma perspectiva centrada na contradição dominação/transgressão como forma de entender dialeticamente a produção do espaço urbano.

Assim, a favela Monte Azul aparece inicialmente em sua análise por meio da discussão do conceito de lugar, e de como este conceito potencializa o entendimento do espaço social ao revelar elementos da vida cotidiana, da ordem próxima, do habitar, em conflito com elementos e ordens distantes (das programações, do espaço-tempo produtivo, do Estado, das ONG´s). A  favela Monte Azul emerge no texto e na análise através de ampla pesquisa de campo que possibilitou à autora realizar um trabalho cartográfico de qualidade, fundamentando um rico debate sobre o conceito de paisagem e mais além permitindo que Fabiana Ribeiro construísse, a partir do seu estudo, uma noção de morfologia. Tal noção se coloca mesmo como um fio condutor de sua análise geográfica ao articular as mudanças infra-estruturais empreendidas em diferentes períodos na favela ao movimento dos conteúdos ligados aos sujeitos produtores daquele espaço, com destaque para as ações da Associação Comunitária Monte Azul (ACMA).

A singularidade da favela Monte Azul se integra histórica e logicamente ao movimento de urbanização da metrópole de São Paulo, evidenciando generalidades. Assim, a matriz assistencialista antroposófica da ACMA, que no início apresenta-se como um aparente negativo que permite uma organização comunitária em prol de melhorias das condições de vida naquela favela – mas que já expressa para a autora uma crise dos movimentos populares urbanos –, em verdade se dobra à burocratização de instituições como ONG´s e o próprio Estado (por meio de políticas de urbanização de favelas), tornando-se o pilar da dominação/normatização do uso do espaço, instaurando um espaço de controle e colocando-se, em uma palavra, como o sujeito a ser negado. Então, ao mesmo tempo em que na favela Monte Azul vislumbra-se a possibilidade de construção de um espaço diferencial em relação a outras ocupações e assentamentos semelhantes em outros lugares da metrópole, estruturam-se os alicerces do processo de reprodução que é metropolitano e mundial, já que as normas, programas e atividades estabelecidas na Monte Azul obedecem a órgãos inclusive internacionais para captação de recursos, como o Banco Mundial. Ao se burocratizar, a ACMA se torna um fim em si mesma, apartada das necessidades concretas dos moradores e obedecendo a nexos alheios à realidade interna dos moradores da favela.

Neste sentido, a autora vai destrinchar o espaço da favela como campo contraditório da luta política entre a realização de um espaço social (apropriado) no interior de um processo tendencial de dominação econômica, e se pergunta quais são os conteúdos da dominação econômica na favela Monte Azul. A partir daí, há uma dialetização do aparente negativo: a ACMA, como possibilidade de superação das desigualdades na favela, é desconstruída criticamente através do descortinar das complexas camadas de contradições que envolvem a luta pela vida não-degradada, pelo uso criativo e pela apropriação do espaço na Monte Azul. Uma periodização é proposta para o momentos de formação, produção e reprodução da favela, sendo que estes momentos, imbricados, apresentam continuidades e descontinuidades.

Desse modo, podemos entender o objeto de estudo em questão à luz da urbanização crítica e da espoliação urbana calcada na expulsão de contingentes populacionais – atraídos pela industrialização – dos centros constituídos, tendo como base o domínio da propriedade privada da terra e a instalação dessa massa expropriada nos interstícios dos espaços periféricos (terrenos públicos e margens de córregos com elevadas declividades) como um momento de formação não apenas da favela Monte Azul mas como traço comum de muitas outras favelas paulistanas. A produção da favela, para Fabiana Ribeiro, corresponde ao momento de adensamento populacional dado inclusive pelas melhorias infra-estruturais levadas a efeito pelos antroposóficos, que concomitantemente iniciam a instauração de normas e de um aparato burocrático de gestão do quase-modelo Monte Azul. É importante destacar o modo como a autora trabalha com o conceito de centralidade, tratando-a como algo necessário à reprodução social no urbano e como algo provisório. A centralidade na periferia é uma proposição que relativiza e dialetiza a rigidez do par centro-periferia, e as melhorias morfológicas na Monte Azul, aliadas a melhorias gerais das condições de vida, foram responsáveis por produzir a referida favela como uma centralidade na periferia, geradora de uma identidade (inicialmente) concreta dos moradores.

A reprodução seria marcada pelo momento atual, em que diversos programas como a urbanização de favelas e a regularização fundiária atravessam a constituição da Monte Azul, evidenciando a consolidação da territorialização da ACMA pari passu com o distanciamento da participação dos moradores e do enfraquecimento das experiências de politização através da instalação de uma identidade abstrata mediada pela ACMA. Tal processo resulta no empobrecimento das relações de sociabilidade entre os moradores, o que se agrava com a disputa e a tentativa de entrada do tráfico de drogas na favela. A territorialização é francamente entendida como um processo de dominação do espaço social, e o que qualifica esta dominação na Monte Azul são elementos materiais (edificações da ACMA) e conteúdos como a precarização do trabalho, a movimentação de capitais para a gestão das atividades, a valorização do solo da favela, as normas, o assistencialismo retomado, a casa como único refúgio do uso sob a pressão do espaço-tempo normatizado da ACMA, a degradação dos espaços públicos conquistados.

Onde estariam então as possibilidades de negação das negatividades de todas as ordens produzidas e reproduzidas no urbano como de resto aprofundadas nas periferias e favelas da metrópole? Para Fabiana Ribeiro, a possibilidade de resistência está na prática criativa que questione radicalmente a vida na cidade, e em particular na favela Monte Azul, e que abra conflituosamente uma brecha na lógica hegemônica que tende a se territorializar e a dominar o espaço social. É assim que a autora chega no teatro como uma prática criativa que nega as negatividades das restrições e normatizações impostas pelo Estado, pelo capital e pela ACMA. A natureza criativa da atividade teatral abre uma saída do evolucionismo do projeto antroposófico em direção a uma prática que envolve o pensar e o agir na realidade entendendo-a como lugar da vida, do uso, da apropriação. Fabiana Ribeiro chega na centralidade do espaço como lugar de embate das estratégias de dominação/apropriação, revelando, com sua pesquisa, a necessidade de aprofundarmos a análise nas complexidades contraditórias do negativo e das possibilidades de mudança que vem dos espaços das periferias da metrópole.