O uso do centro da cidade de São Paulo e sua possibilidade de apropriação

Rafael Faleiros de Padua

Resenha do livro: O uso do centro da cidade de São Paulo e sua possibilidade de apropriação- Glória da Anunciação Alves.

Este trabalho publicado agora, originalmente uma tese de doutorado defendida no Departamento de Geografia da USP em 1999, se debruça sobre o centro da cidade de São Paulo naquilo que ele tem de contraditório e conflituoso, balizando-se pela contradição dominação/apropriação. No nosso contexto de país do terceiro mundo, capitalista periférico, a metrópole de São Paulo expressa claramente esta condição e o seu centro reflete visivelmente essa condição. A riqueza que a metrópole produz, quer se fazer representar pelo centro, assim como a pobreza (produzida contraditoriamente pela produção da riqueza) está no centro como forma de expressão da vida possível na metrópole. Assim, para grande parcela da população pobre, o centro é lugar de moradia e principalmente, o centro é condição de sobrevivência, pois guarda características fundamentais (concentração de pessoas, oferta de trabalho, grande gama de serviços,etc.). De um lado o centro tende e é tomado pelo poder hegemônico, estatal e privado, como um lugar da ordem, do poder, organizado para ser vitrine da “cidade mundial”, e para isso o Estado e atores privados promovem ações no sentido de torná-lo espaço de consumo de uma classe média alta, buscando afastar os pobres do centro, e por outro lado o centro ainda é o centro simbólico da cidade, para onde pessoas de todos os cantos da metrópole vão para fazer compras, passear, assistir a shows gratuitos, etc. Fica explícita no centro, a contradição dominação/apropriação muito bem perseguida pela autora como meio de encontrar os conteúdos da urbanização contemporânea da metrópole.

Segundo a autora, o centro carrega uma característica central da vida urbana hoje, pois permite o uso sem exigir a permanência, sem deixar de ter espaços de referência, de duração, que permitem a criação de uma identidade com a cidade. O centro contém, assim, formas e atividades que compõe a representação de cidade, nos dizeres da autora. O centro comporta, com isso, as possibilidades abertas pela vida urbana, o sentido da reunião, da concentração de pessoas e funções, a potencialização do encontro das diferenças reunidas na cidade. No entanto, com a industrialização invadindo a cidade e produzindo o que se chamou de implosão-explosão da cidade, ao mesmo tempo em que a cidade se espraia em imensas periferias, o centro se dilui por todo o tecido urbano. Surgem novas centralidades espalhadas pela cidade, configurando uma cidade polinucleada, processo que, no entanto, não destitui o centro tradicional de seu sentido de centralidade, mas antes afirma o seu poder unificador e articulador das várias novas centralidades. Com esse processo de constituição de novas centralidades, o centro tradicional tem uma perda de atividades e de população, sofrendo uma relativa desvalorização, sem perder, como dissemos anteriormente, o seu papel simbólico. Tornou-se lugar de moradia de uma população empobrecida, que tem no centro suas atividades. Assim, o centro não deixa de apresentar sua multifuncionalidade característica, não deixa de ser referência para toda a população da metrópole, mesmo que nem todos se dirijam ao centro cotidianamente. Mas o centro passou a estar ligado, através de uma visão difundida pelas classes hegemônicas e inclusive pelo poder estatal, como o lugar da violência, identificando-a com a relativa desvalorização e com o lugar de moradia e sobrevivência dos pobres. Com esse discurso, em nome de uma “integração” do centro à cidade, elabora-se projetos de requalificação e justifica-se o afastamento dos pobres do centro.

Nos projetos de requalificação elaborados para o centro, seja de iniciativa da Prefeitura, seja de iniciativa de organizações privadas, como a Associação Viva o Centro, ou na articulação do Estado com o setor privado, a autora deixa claro que os conteúdos são os da subordinação do uso (da apropriação) do centro à posse e dominação privada (ao valor de troca). São iniciativas que transformam o cidadão em consumidor, e consumidor de espaços específicos, com a fragmentação do espaço e a consequente segregação. Ou seja, nestes projetos, busca-se a funcionalização dos espaços do centro para classes sociais determinadas (classes média alta e alta), preparando o centro para um universo voltado para o consumo do lugar. Esse processo se realiza como uma restrição ao uso, o que provoca o aprofundamento da segregação sócio-espacial, pois o uso do lugar passa a ser mediado cada vez mais pelo dinheiro, afastando as pessoas que não o possuem em quantidade necessária para este uso. Com essas ações, aprofundam-se as contradições no centro, pois, segundo a autora, ele é ao mesmo tempo funcional (reprodutor das relações de produção) e simbólico (lugar de encontro e referência para a população).
Fica claro que as ações dos atores hegemônicos visam a afirmação do centro como espaço de dominação, o que provoca a destituição de espaços centrais de sociabilidade, como a rua ou praças, provocando a restrição do uso de espaços públicos, o que faz a autora afirmar que o centro é “lugar da produção e do conflito permanentes”. Ela mostra que o que pauta as requalificações é tornar o espaço “limpo” para as classes abastadas, para os usuários capitalizados consumirem o espaço, como se a cidade fosse uma empresa e devesse ser cada vez mais produtiva (produtora de capital). O centro, nesta perspectiva, teria o seu espaço monitorado para estes objetivos específicos do mercado, assim como para ser tomado não como o lugar da vida da população da cidade, mas como uma paisagem a ser olhada, para ser apreciada. Nesse sentido, os embelezamentos propostos para o centro têm o intuito de torná-lo, além de um espaço propício para o consumo produtivo, uma espécie de portfólio de São Paulo como cidade mundial. Porém, como a autora deixa claro, na cidade de São Paulo a desigualdade é gritante e por isso, também muito visível, o que se pretende esconder nas revitalizações. Assim, por todo o trabalho a autora mostra que o centro é um lugar de conflito e de disputa, pois é um lugar simbólico de toda a população e é também um lugar funcionalmente estruturado para a reprodução econômica. As estratégias dos grupos hegemônicos visam a retirada da população pobre para a chegada de uma população abastada, com padrão de consumo, inclusive com planos de privatização de espaços públicos. Esses projetos de revitalização atingem a vida cotidiana das pessoas que usam o centro, restringindo o uso das classes empobrecidas e incentivando uma elitização do espaço.

Mas o planejamento e o urbanismo não conseguem eliminar todas as possibilidades contidas no centro, mesmo porque o centro carrega as características da sociedade como um todo. No centro, as contradições estão abertas e são visíveis e mesmo que o Estado sempre esteja tentando impor a ordem, há a produção de novas contradições. Assim, a publicação dessa tese como livro com acesso irrestrito a todos pela internet é muito importante para a compreensão dos verdadeiros conteúdos desses projetos, escondidos e mascarados pelos influentes discursos ideológicos veiculados pelo Estado e pelo setor privado interessado nessas ações segregacionistas, num momento em que se intensificam as ações do poder público em áreas do centro (como a Luz, por exemplo). É preciso caminhar com a autora, segundo quem o centro é a “representação privilegiada das contradições da sociedade urbana” e o “mais simbólico território do urbano”, para entendermos um pouco mais dos conteúdos da urbanização de São Paulo e da urbanização contemporânea.