A geografia num contexto de mudanças

O ano de 2011 teve um primeiro semestre agitado. Revoltas no mundo islâmico contra ditadores sanguinários e seus aparelhos de estado, o mundo rico patina diante de uma crise de grandes proporções, com epicentro nos Estados Unidos, mas com evidente repercussão nos estados-nacionais mais desregulamentados, o acidente com a usina nuclear de Fukushima coloca em questão o uso da energia nuclear. O que dizer então das mudanças maléficas no Código florestal? O geógrafo tem muito a dizer nesta conjuntura.

Ricardo Alvarez


"A reprodução continuada do espaço se realiza como aspecto fundamental
da reprodução ininterrupta da vida”
Ana Fani Alessandri Carlos in ”A produção do Espaço Urbano”


Dia 29 de maio é o dia do geógrafo. A data serve essencialmente como momento de reflexão sobre os rumos da geografia no mundo contemporâneo e sua capacidade em explica-lo, serve ainda ao debate da condição do professor em seu trabalho como educador num contexto complexo e permeado de novos paradigmas nas relações familiares e sociais, serve enfim, à discussão mais ampla dos rumos de nossa sociedade, cada vez mais escrava do consumismo, submetida ao trabalho penoso, mal remunerado e sob a pressão constante do desemprego.

Matéria prima para a análise desta realidade prenhe de contradições não falta. A reprodução das relações sociais ocorre em ritmo cada vez mais acelerado, espelho fiel do mesmo ritmo com que o capital se reproduz e gera lucros. Neste contexto falta-nos tempo para diversão, lazer e leitura, o trabalho nos exaure, mas em contrapartida os exemplos das mazelas de funcionamento do sistema capitalista, que direciona os rumos da sociedade, se fazem cada vez evidentes.

Vejamos o caso da aprovação do novo Código Florestal, na Câmara dos Deputados. Por que ampliar a área de plantio e de uso da pecuária? As terras hoje à disposição das atividades econômicas não são suficientes no Brasil para dar conta da demanda interna e externa? Faltam novas terras ou carecemos de uma ação enérgica do governo federal no sentido de inibir a especulação da terra no campo forçando-as a produzir?

Os dados do Censo Agropecuário de 2006 mostram que nos 20 anos que o separam do levantamento de 1985 o Brasil reduziu em 20 milhões de hectares a área utilizada. Se voltássemos aos 374 milhões de hectares dos anos 80 contra os 354 milhões de hoje estávamos abastecidos de um novo Sergipe de terras prontas para a produção.

É evidente que não precisamos derrubar mais matas ciliares reduzindo a umidade do ambiente, nem tampouco admitir o uso de terras de maior declividade para a pecuária correndo o risco da erosão e assoreamentos de nossas redes de drenagem para ampliar a área de produção. Precisamos sim combater a especulação de terras no campo, forçar o pagamento de impostos mais pesados para terras improdutivas, realizar uma reforma agrária radical e assentar os pequenos produtores, além de impulsionar a agricultura familiar.

O Brasil é muito grande e os limites da produção no campo não estão dados pelas “barreiras ambientais” impostas pelo Código Florestal atual. O buraco é mais embaixo.

A aprovação da polêmica matéria passa por outros canais, que não o da defesa da vida, da produção e da natureza. Estão em jogo os lucros extraordinários do agronegócio, seu desejo em ocupar novas e mais baratas terras, a oportunidade de ampliar a produção de matérias primas e produtos primários num contexto de alta dos preços de alimentos e das commodities no mercado internacional.

Passa também por uma combinação de variáveis estruturais e conjunturais. De um lado um governo fragilizado pela escolha em fazer o jogo das elites transportando as relações de comércio para dentro do parlamento, pagando um preço alto pelas negociações com o fisiologismo dos partidos e deputados da base de sustentação e mesmo dentro do próprio partido da presidenta. De outro lado por uma condição conjuntural que colocou no bojo do debate do Código Florestal Antônio Palocci, homem forte do governo e digno representante do capital financeiro e seus interesses, abatido pelas denúncias de enriquecimento veloz.

Como se pode observar o nervo está sempre exposto, e só mesmo com muita mídia e trabalho ideológico para esconder as verdadeiras razões que impulsionam os interesses do capital através de seus representantes.

Os geógrafos, como cientistas sociais, tem a responsabilidade de desvendar as relações sociais que se ocultam diante da paisagem, tem um papel importante de trazer luz às entranhas ocultas por onde caminham as relações sociais que criam esta paisagem e produzem o espaço geográfico.

A esperança da mudança passa pela compreensão da realidade e pela certeza de que ”um outro mundo é possível”. Navegamos cotidianamente nestas águas dotadas de uma dupla condição: o real e a possibilidade do novo. Podemos reforçar os interesses burgueses e exaltar as qualidades da sociedade capitalista (embora haja pouco o que destacar), ou de outro lado limpar o opaco dos óculos e mostrar que a vida pode ser diferente, plena, justa, fraterna e igualitária.

Escreveu o professor Milton Santos num de seus livros: “O simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana”. Pronto, simples assim. As pessoas precisam de terra para trabalhar, produzir e viver, bem que lhe é retirado em nome da especulação e das necessidades dos mercados mundiais.

No mesmo dia em que a Câmara dos Deputados aprovava o malfadado projeto de Código Florestal, Maria do Espírito Santo e José Cláudio Ribeiro da Silva, lutadores do povo eram assassinados no Pará. Não foram os primeiros, num país que convive com este tipo de crime de longa data. Nem serão os últimos, pois as vaias que foram dadas na Câmara quando do anúncio de suas mortes dá muito bem o tom com que fazendeiros e ruralistas enxergam àqueles que “ameaçam” suas propriedades.

Apesar da violência a luta pela terra não cessa, mostrando-nos que os movimentos sociais estão vivos e pulsam, pois não há saída contra a miséria e opressão senão lutando. Foi assim que ocorreu na África.

Quem diria que verdugos travestidos de líderes insubstituíveis e fantoches dos interesses ocidentais tombariam ou seriam obrigados a fazer importantes concessões no Oriente Médio, na África mediterrânea e adjacências, depois da massa ganhar as ruas e em uníssono e gritar de peito cheio que “a paciência acabou”?

Quem diria que a União Europeia esfarelaria depois de flexibilizar as fronteiras ao capital, centralizar a gestão e deixar sua periferia ao relento? Como reduzir os impactos da crise de 2008 que desestruturou a produção e o consumo criando grande confusão sobre suas causas? Observa-se uma Europa que oscila entre mobilizações sociais por mudanças na economia, em defesa do emprego e da renda e por investimentos sociais, ao mesmo tempo em que líderes reacionários e neofascistas resgatam o velho e sujo discurso da culpa dos imigrantes sobre o quadro atual.

A eleição de Obama também é simbólica neste sentido. Independente dos descaminhos de seu governo, sua chegada ao poder foi marcada por um sentimento de mudança que orientou o voto de boa parte de seus eleitores. Socialmente pouco avançou, fez significativas concessões ao grande capital rentista - como manter os gestores da crise em cargos chaves no governo -, além de dar continuidade à política externa militarizada e agressiva herdada de seus antecessores. Sem dar sinais efetivos de recuperação econômica em função da manutenção de uma política de favorecimento do grande capital especulativo, sua popularidade despenca, apesar do respiro conseguido com o assassinato de Osama Bin Laden.

O expansionismo imperialista dos EUA (que tem nas invasões do Afeganistão e do Iraque seu ponto alto), a violência do Estado de Israel contra os Palestinos, a falta de empregos, em especial aos adolescentes, a rejeição às ditaduras militares ou civis, a luta pela manutenção de direitos trabalhistas, as reivindicações por infraestrutura e serviços sociais básicos, enfim, há um quadro de reivindicações que tem sido objeto de ação dos mais diversos movimentos sociais espalhados pelo mundo num crescente indiscutível. As lutas sociais ganham corpo neste início de século XXI depois de décadas de hegemonia neoliberal.

Embora o acidente coma usina nuclear de Fukushima tenha origem num fenômeno natural, é certo que a empresa privada que a administra tem um histórico de desrespeito às normas básicas de segurança das usinas e aos direitos de seus trabalhadores. Ganhou um grande presente com as privatizações japonesas nos anos 80 e 90, que lhe rendeu lucros estratosféricos, desde então.

Parece-nos que o momento histórico que se avizinha trás consigo um forte questionamento contra as políticas neoliberais e seus efeitos, mesmo que ainda desarticulados e apoiados em várias frentes de luta. A questão que se coloca é que esta fase de acumulação do capital se esgotou, chegou ao seu limite, mas isto ainda não foi percebido pelos chefes de estado dos países ricos, que insistem em aplicar políticas de desregulamentação e redução do estado na economia, em consonância com interesses das grandes corporações transnacionais.

Neste quadro de luta social pontual, mas carregada de energia e desejo de mudança, em contrapartida à falta de rumos e perspectivas do capitalismo em crise em sua fase neoliberal, pode-se afirmar que as lutas serão mais intensas e com maior visibilidade externa.

Para reduzir os efeitos nefastos da crise não basta dissimular a realidade com caras novas, como é o caso de Obama e Sarkozy (conservadores em essência), nem tampouco a eleição de mulheres (novidades neste meio, como Merkel, Bachelet e Dilma). Não é a pirotecnia que fazer acender as luzes do novo caminho para o capitalismo. Falta-lhe uma nova formulação em substituição à tragédia social gerada pela desregulamentação e o estado mínimo.

A hora é propicia para uma recomposição das forças anticapitalistas, que devem ter claro que se sua pauta é diversa, seus objetivos se confundem.

Ricardo Alvarez

Geógrafo, é professor e editor do site Controvérsia