Projetos urbanos: alianças e conflitos na reprodução da metrópole

SILACC 2010 – Simpósio Íbero Americano Cidade e Cultura: Novas Territorialidades
 

Resumo:
O presente artigo discute as transformações contemporâneas da metrópole paulistana partindo-se da concepção de que a reprodução do espaço metropolitano sinaliza e é parte dos novos conteúdos da reprodução do capital e da sociedade. Sua análise permite desvendar os conteúdos do processo de urbanização no momento atual, que parecem remeter ao aprofundamento da contradição entre a produção social do espaço e sua apropriação privada. Entre as transformações mais fortemente materializadas, está a desativação de antigas áreas industriais, que acabam por constituir-se em „vazios urbanos‟, que se situam em locais de grande acessibilidade e de presença de toda infra-estrutura, o que lhes confere a potencialidade de um novo uso. Assim, a produção do espaço de um período anterior aparece como condição para os novos investimentos, nas quais o processo de reestruturação capitalista se torna mais evidente e para as quais é preciso não apenas investimentos, mas estratégias de renovação, para viabilizar um novo ciclo de revalorização. Neste momento, emerge o papel do Estado, impondo sua racionalidade, intervindo diretamente através da normatização, das parcerias, projetos, operações e alianças na produção do espaço, garantindo a continuidade do processo de valorização e aprofundando as desigualdades sócio-espaciais na metrópole. No caso específico analisado, a promessa de criação de um bairro com „cara‟ de cidade, por parte de um grupo industrial, levou à parceria com o poder público local e à conflitos explícitos entre o valor de uso e valor de troca no processo de reprodução espacial.
Palavras-chave:
Reprodução do espaço – metrópole – Estado – valorização imobiliária
O movimento de valorização – desvalorização e revalorização do espaço urbano metropolitano
O processo de industrialização que se efetivou em São Paulo a partir do início do século XX, foi o indutor do processo de metropolização. As alianças de interesses entre o capital industrial, os especuladores, proprietários de terras, e o poder político, possibilitaram as bases da formação do que viria a ser a região metropolitana, constituída, num primeiro momento, de um centro urbano denso e polarizador, associado a vários subúrbios industriais e/ou agrícolas, diretamente vinculados à ele. A partir do final dos anos 1950, a concentração da estrutura produtiva e a centralização do capital em São Paulo, foram acompanhadas de uma urbanização contraditória que, ao mesmo tempo, absorvia as modernidades possíveis e expulsava para as periferias imensa quantidade de pessoas que, na impossibilidade de viver o urbano, contraditoriamente potencializavam a sua expansão, através da reprodução da vida em seu cotidiano. Assim, das décadas de 1960 a 1980, para além dos indicadores de produção industrial e de crescimento demográfico, a expansão da metrópole caracterizou-se também pela intensa expansão de sua área construída, marcadamente fragmentada e hierarquizada e muitas vezes em ritmo maior do que a velocidade de seu crescimento populacional. Os subúrbios que caracterizaram a expansão de São Paulo no final do século XIX e XX se desvaneceram e o espelho do ciclo virtuoso da expansão capitalista em São Paulo foi a sua periferização, rompendo paulatinamente os limites da mancha urbana.
Atualmente, a metrópole paulista vive um novo período, revelando o momento de transição do domínio do capital industrial para o capital financeiro, iluminando o processo de mundialização do capital e a constituição de uma sociedade urbana. Trata-se de novas condições de reprodução social, vinculadas às metamorfoses do capitalismo mundial que vêm se desenrolando desde os anos 1970 e que apontam para: a) uma crise geral de acumulação dificultando a reprodução ampliada do capital na esfera produtiva e gerando profundas transformações sócio-espaciais; b) o amadurecimento da internacionalização dos mercados, dos fluxos econômicos e das corporações transnacionais; c) a financeirização da riqueza; d) o fortalecimento de práticas predatórias de acumulação, como fraudes, ações especulativas, espionagem, privatizações, expropriações, desvalorização de ativos e, e) expansão do processo de proletarização, ao mesmo tempo em que ocorre sua desvalorização, com perda de direitos e de mínimas garantias sociais.
A natureza destas transformações denota que elas não dizem respeito apenas às movimentações do mercado e seus agentes econômicos, mas envolvem necessariamente uma ação de um poder estatista e, em outro nível, as condições da reprodução social e, por conseguinte, a reprodução do espaço. Aqui a reprodução do espaço é entendida enquanto parte do processo de reprodução ampliada do capital, como condição, produto e meio1. Ao mesmo tempo, é também a reprodução das relações sociais, às necessidades e desejos, à reprodução da vida. Como nos ensina Lefebvre (1999), a reprodução não diz respeito apenas ao repetitivo, pois é do repetitivo que emerge o novo, numa relação contraditória e conflituosa. Por exemplo, se o processo de valorização do capital é, antes de tudo, dado pela possibilidade da exploração do trabalho e da sua circulação, a enorme massa de capital fictício e a financeirização da riqueza se apresentam como uma contradição ao próprio processo de valorização. Daí emerge a necessidade de encontrar novas possibilidades de expansão, de modo a garantir que parte deste capital possa retornar ao circuito produtivo e valorizar-se. Neste sentido, a reprodução do espaço se coloca então, como um processo de revalorização e tem como contrapartida, o aprofundamento da segregação sócio-espacial, ainda mais numa metrópole produzida sob a marca da desigualdade, com „ilhas de prosperidade‟, num mar de pobreza. Se, como afirma Smith (2007), a expansão econômica hoje se dá, sobretudo, não pela expansão geográfica absoluta, mas pela diferenciação espacial, é preciso ressaltar que na metrópole de São Paulo, forjada sob uma industrialização de baixos salários, concentração de terras e investimentos públicos seletivos, a desigualdade espacial é a pré-condição do processo de revalorização e, evidentemente se acentua com ela.
A expansão metropolitana consolidou-se com a conformação de vários eixos e manchas de concentração industrial, localizadas muitas vezes em áreas antes consideradas periféricas, mas hoje plenamente integradas ao tecido urbano, dotadas de infra-estrutura e próximas a bairros ou centros mais valorizados. A crise de acumulação que vem se delineando desde os anos 1970, levou à constante necessidade de ajustes econômicos e políticos no sentido de gestar a crise e garantir a continuidade do processo, de modo que, atualmente, pode-se dizer2 que a reprodução econômica capitalista assenta-se em dizer dois pilares fundamentais e plenamente articulados: a reestruturação produtiva, que envolve uma reorganização técnica, organizacional e locacional, bem como
1 A tese sobre a reprodução do espaço urbano foi apresentada como pesquisa de doutorado por Ana Fani Alessandri Carlos, junto ao Departamento de Geografia da USP e está publicada em livro da autora intitulado: A reprodução do espaço urbano – o caso de Cotia (1994), bem como no livro da mesma autora, intitulado; Espaço-tempo na metrópole (2001).
2 A partir das proposições de Chesnais (1999), Arrighi (1996 ), Fiori ( 1995) Harvey (2004), entre outros.
pressão sobre o trabalhador com precarização das condições de trabalho e desemprego e, a produção de um capital fictício que, embora tenha origem na produção, se reproduz com autonomia, gerando uma quantidade de capital dinheiro que não corresponde ao montante da produção, mas que interfere nos arranjos e decisões corporativas, de modo que a localização das unidades produtivas está relacionada às possibilidades de rendimentos oferecidos pelos diferentes locais (nos quais se inclui, além da infra-estrutura, a possibilidade de articulação com os inúmeros „fornecedores‟) em arranjos estratégicos que visam garantir e ampliar o processo de acumulação. É com este pano de fundo que se deve entender a reestruturação da atividade industrial na região metropolitana de São Paulo, processo que tem no fechamento e/ou deslocamento de unidades industriais, com a conseqüente criação de „vazios‟, uma de suas faces.
Do ponto de vista do capital, a existência de galpões, máquinas, estruturas metálicas, cabines de energia, ramais ferroviários, num dado segmento do território, pode ser entendida enquanto concentração de capital fixo. Marx (1977) salientou que o capital só se realiza enquanto valor em circulação e que o capital fixo não possui uma existência autônoma, constituindo-se como tal no momento determinado do processo de produção. Neste sentido, o capital fixo também circula, ainda que parcialmente, como valor, no processo de produção, sendo consumido aos poucos, em cada movimento de rotação do capital. Como afirma Marx (1977, p. 203): „Dado que o capital fixo tenha entrado no processo de produção, permanece nele, perece também nele e é consumido nele‟. O tempo de consumo do capital fixo é relativo, apontando para a necessidade de sua reprodução, o que vai interferir no tempo de rotação do capital total. A partir do momento em que a produção não mais se realiza, este capital fixo se imobiliza efetivamente, o que aponta para sua desvalorização e para alterações nos fluxos de pessoas e mercadorias, nas atividades comerciais existentes ao redor e, evidentemente, nas condições de vida e práticas sócio-espaciais de milhares de trabalhadores. Esta desvalorização é entendida enquanto degradação e, no caso de distribuição territorial contínua deste capital na cidade, estas áreas passam a ser rotuladas como espaços degradados, desqualificados. Este momento entre a efetiva imobilidade do capital e sua superação, de modo que o espaço deixe de ser condição potencial para se transformar em meio efetivo de uma nova valorização, é o que chamamos de obsolescência momentânea que, no caso da metrópole de São Paulo, compreende um conjunto significativo de áreas, especialmente as de concentração industrial mais antiga. A obsolescência de parte da cidade pode ser um entrave ao chamado crescimento, metáfora para camuflar a natureza e a finalidade da produção capitalista.
Ao mesmo tempo, a disponibilidade de grandes áreas, relativamente centrais (do ponto de vista da acessibilidade, infra-estrutura), emerge como imenso potencial de uma nova urbanização, no interior de uma mancha urbana marcada pela alta densidade de edificações e fragmentação da propriedade (áreas de reserva).
Se o tempo de uso deste capital se completou, no sentido de que foi totalmente consumido ao logo do processo de produção ou mesmo se as mudanças estruturais do capitalismo induziram à necessidade de reestruturação da produção3 e/ou dispersão espacial, resta a propriedade privada do solo que, em geral de grandes proporções, está inserida numa área densamente urbanizada, com infra-estrutura, podendo ser revalorizada, sob determinadas condições. Pode-se argumentar que a propriedade do solo não é em si capital, mas o seu monopólio constitui a possibilidade de auferir uma parte da riqueza social e, portanto, coloca-se como capital em potencial. Mas, para isto, torna-se necessário restituir o uso, de modo a viabilizar a realização do valor de troca e o aumento da renda.
Esta revalorização dependerá, certamente, de um processo complexo que leve à produção de um „novo lugar‟, que não se remeta mais à dinâmica espacial da produção industrial. É importante lembrar que estas propriedades guardam estruturas pesadas, muitas vezes estão com solo contaminado, o que implica em estratégias do setor imobiliário, bem como a realização de obras paisagísticas, urbanísticas “in loco” e/ou no entorno, operações urbanas, flexibilização da legislação por parte do poder público, alavancando a possibilidade de transformação o que, num sentido mais amplo, leva ao processo de valorização, além de produzir uma valorização imobiliária local. Não se trata, portanto de simples negócio de compra e venda, mas de, a partir da revalorização da propriedade, redefinir o modo como o urbano se realiza, através da produção destas novas espacialidades. Assim, se a continuidade do processo de reprodução encontra no espaço um limite que precisa ser superado, não apenas a produção física de novos elementos e paisagens são necessárias, mas também novas normatizações e/ou desregulamentações e a criação de novos desejos e necessidades, a serem satisfeitas mediante a constituição do „novo lugar‟.
Meyer et alli (2004), mostram que há várias unidades industriais desativadas em transformação na metrópole de São Paulo, com tendências de produção de espaços diferenciados. Por exemplo, na Barra Funda, Santo Amaro, Marginal Pinheiros e parte da Vila Olímpia, a tendência é de ocupação destas áreas por edifícios comerciais de escritórios de alto padrão, entretenimento; no Brás e na Mooca, a tendência é a substituição por imóveis residenciais de vários padrões e, ao longo de rodovias como Anchieta – Imigrantes, Dutra, Anhangüera, Régis Bittencourt, empresas de logística têm ocupado parte dos antigos galpões industriais. Ao longo do rio Tamanduatei, em direção ao ABC paulista, temos a presença significativa ainda de industrias, mas também sua substituição por centros de distribuição e logística, empreendimentos residenciais, shopping-center.
3 Harvey (1990) alerta para o fato de que, mesmo antes do desgaste total do capital fixo empregado, amplos processos de desvalorização também podem ocorrer diante da introdução de maquinarias novas e mais eficientes.
O que tem sido observado, em muitos casos, é que o Estado tem se configurado como a mediação necessária para viabilizar a constituição de novos usos e potencializar a valorização do capital através da criação de infra-estrutura, de projetos urbanos, de parcerias, operações urbanas ou simplesmente da flexibilização pontual de legislação de modo a garantir a continuidade do processo.
No caso do município de Santo André (RMSP), por exemplo, cujo processo de perda de atividade e, sobretudo emprego industrial, foi significativo a partir de meados dos anos 1980, a prefeitura municipal empreendeu, a partir de 1998, uma estratégia de recuperação econômica que se viabilizaria através da reprodução do espaço urbano, com a adoção de um projeto de requalificação urbana em parte do tecido urbano que concentra antigas áreas industriais, muitas desativadas. Como o perímetro que envolvia as ações urbanísticas de requalificação era aquele em torno do rio Tamanduatei e da estrada de ferro (antiga São Paulo Railway), o projeto passou a ser chamado de Eixo Tamanduatehy e foi marcado por várias fases diferenciadas, caracterizadas pela maior ou menor importância política, por pressões dos movimentos populares e da academia, pela própria dinâmica de investimento do setor imobiliário e dos setores produtivos e de serviços. Mas, em todas elas, percebe-se a continuidade da perspectiva de requalificação/reestruturação da área. Da época do lançamento do projeto, até 2001, o discurso de criação de uma nova centralidade pautada nos serviços de ponta, foi reforçado em todos os momentos em que a divulgação do mesmo foi realizada, como se fosse imperativo negar a identidade industrial e operária do município. Em entrevista junto à gerente de projetos urbanos do município, perguntamos o porquê desta ênfase na divulgação da criação de uma nova centralidade, e a resposta foi: “Porque era preciso vender a idéia de um novo uso para a área. O uso industrial já estava consolidado, era preciso mostrar que, embora a área estivesse classificada como zona industrial, seria possível negociar novos usos.” Abria-se, então, a possibilidade da superação da obsolescência, tendo, como mediação fundamental, o Estado.
Uma grande estratégia de marketing, que envolveu inclusive a contratação de consultores internacionais, teve como objetivo dar visibilidade às intenções do poder público de potencializar a reutilização destas áreas. Nos dois primeiros anos de andamento do projeto, o principal instrumento utilizado pela prefeitura local, para atrair novos investidores foi a flexibilização da legislação urbanística e a isenção de IPTU por um determinado número de anos, conforme a permuta a ser realizada entre o empreendedor e a prefeitura.Como demonstrou Alvarez (2009), entre 1998 e 1999, foram aprovadas sete parcerias que envolviam a flexibilização das leis urbanísticas e de uso do solo para empreendedores e locais específicos, além de realizadas obras de infra-estrutura, como canalização de córrego, duplicação de via, obras de paisagismo, para viabilizar os novos investimentos.
Destas parcerias, três foram emblemáticas, pelo porte da transformação que ensejavam e pelos investidores interessados: duas realizadas com a Cyrela que pretendia inaugurar suas
atividades na cidade, e uma com o grupo Pirelli, já presente no município desde as primeiras décadas do século XX, uma parceria que envolveu um rearranjo fundiário de suas fábricas de pneus e cabos elétricos. Nestes dois casos, as parcerias foram tratadas como operação urbana, muito embora a natureza destas operações difira das operações urbanas consorciadas, previstas no Estatuto das Cidades, Lei Federal nº 10257, aprovada em 10 de julho de 2001, que prevê instrumentos e diretrizes gerais de política urbana.4
A possibilidade de utilização do instrumento Operação Urbana estava colocada na lei do Plano Diretor Municipal de 1995 (Lei Municipal nº 7.333/95) que, no art. 81, definia como Operação Urbana o conjunto integrado de intervenções e medidas, visando transformações urbanísticas estruturais na cidade, com a participação da iniciativa privada. A lei não previa demarcação de um perímetro pré-definido no qual se estipulasse volume de potencial construtivo, que pudesse ser vendido. Não havia previsão de atendimento econômico e social para população afetada pela operação, nem de formas de controle da operação com participação da sociedade civil, tal como define o artigo 33 do Estatuto das Cidades, por exemplo.
As operações urbanas em Santo André foram realizadas pontualmente e com parceiros específicos, mas foram aprovadas pela Câmara Municipal, o que permitiria, em parte, maior controle social. No caso da operação envolvendo o grupo Pirelli, por exemplo, os moradores desapropriados ocuparam a tribuna da Câmara reiterada vezes para protestar contra os critérios de desapropriação. No entanto, embora os princípios gerais tivessem sido aprovados por lei com a votação dos vereadores, o que pelo menos em tese garantia maior conhecimento do projeto e participação da população, a execução dos termos das permutas, isenção de IPTU, calendário de obras, valor das desapropriações, etc. foram formalizados em acordos na forma de Termos de Compromisso, assinados apenas entre o poder executivo e os empreendedores, sem nenhuma forma de participação ou de controle social, nem mesmo pela Câmara Municipal.
No caso das operações envolvendo a Cyrella, elas resultaram na implantação de shopping-center, dois hotéis e um condomínio de alto padrão em antigas áreas industriais do município, situadas em local estratégico: lindeiras a um parque público, bem próximo ao centro, e a um dos bairros mais valorizados da cidade, o que resultou num aprofundamento da valorização imobiliária desta porção do tecido urbano. Em que pese os investimentos públicos que foram direcionados à viabilização destes empreendimentos, como demonstrou Alvarez (2009), não houve, neste caso, remoção ou desapropriação de famílias e, portanto o conflito entre os interesses públicos e privados ficou „mascarado‟ pelo discurso de que se tratava de garantir empregos e investimentos para o município, favorecendo indiretamente a todos os munícipes. No entanto, no caso da parceria com o grupo Pirelli, sob a promessa de transformação de uma área
4 A partir do Plano Diretor de Santo André, aprovado em dezembro de 2004, as operações urbanas consorciadas constam como instrumentos de política urbana, nos termos propostos pelo Estatuto da Cidade.
industrial num novo espaço marcado por edifícios de alto padrão, escritórios e centros de gestão e tecnologia, comércio e universidade, foi realizada uma operação de reestruturação fundiária que resultou na desapropriação de trinta e seis famílias e nove comerciantes, explicitando as estratégias, os conflitos e as alianças no processo de reprodução, como será visto a seguir.
A “operação urbana” Cidade Pirelli: conflitos e alianças na reprodução do espaço.
O grupo Pirelli iniciou suas atividades no Brasil, comprando a CONAC, uma empresa de cabos elétricos que já funcionava em Santo André. Na década de 1940, ampliou seus negócios no município, instalando a fábrica de Pneus, atualmente uma das mais importantes para o grupo5. Mas, o interesse por operações imobiliárias por parte da Pirelli não nasceu no Brasil. O grupo possui uma empresa denominada Pirelli Real Estate, com sede em Milão e que atua em venda, locação, incorporação imobiliária e administração de fundos imobiliários. Segundo o site oficial da empresa, ela vem atuando no mercado imobiliário europeu desde o início dos anos 1990, quando chamava-se Milano Centrale. Em 1995 iniciou o projeto que lhe deu o aporte necessário para o crescimento: o La Bicocca, que “representa uma das mais importantes intervenções de requalificação urbana realizada na Europa, nos últimos 30 anos e um dos maiores projetos de desenvolvimento da área metropolitana de Milão”.6 Em 2002, colocou suas ações na Bolsa de Valores de Milão e, a partir dos anos 2000, iniciou uma série de “joint-ventures”, passando a atuar no mercado imobiliário da Alemanha, Polônia, Bulgária, e Romênia. Assim, embora no Brasil não haja oficialmente uma empresa que atue no setor imobiliário do grupo Pirelli, é evidente que a vasta e diversificada experiência internacional foi importante para dar suporte e definir os interesses da empresa quando da iniciativa de negociar com a Prefeitura de Santo André (PMSA) a possibilidade de rearranjar os lotes e quadras que lhe pertenciam e constituir um projeto de urbanização e investimentos para a área.
A pesquisa revelou que já em 1997, a Pirelli manifestou, para a prefeitura, o interesse em transformar economicamente parte de seus imóveis na cidade. Com a desativação da unidade de produção de cabos e a um possível rearranjo fundiário, envolvendo terrenos da empresa, o projeto vislumbrado pela Pirelli envolvia construção de hotel quatro estrelas, universidade, centro de convenções, rua 24 horas, torres de serviços e uma ponte/viaduto de transposição sobre a ferrovia e o rio Tamanduatei, que ligaria os terrenos da Pirelli à avenida dos Estados. A notícia de que este empreendimento traria investimentos da ordem de 200 milhões para Santo André foi publicada em dezembro de 1997, no jornal local. Mas os moradores e comerciantes que foram
5 Conforme site da empresa no Brasil: http://www.pirelli.com.br/web/company/about-pirelli-tyre/pirelli-in-bra…
6 Disponível em: http://www.pirellire.com/The_Company/origins.asp Tradução da autora.
desapropriados pela Operação Urbana Pirelli (OUP) e ouvidos para a pesquisa, relataram que os boatos de que a Pirelli teria interesse em comprar a área e unificar seus terrenos vinham de longa data, mas só se confirmaram a partir de 1998.
O projeto já estava alinhavado pelo escritório de Edo Rocha, e seria semelhante às transformações produzidas em La Biccoca, na Itália, onde está a sede da empresa. O projeto La Biccoca diz respeito a reestruturação de área industrial, na qual situava-se inclusive a empresa, localizada na periferia de Milão e foi o estopim do crescimento da atividade imobiliária pelo grupo italiano. Atualmente, numa área de 750.000 m² encontram-se sedes de empresas como a Siemens e a Pirelli, de bancos, a Universidade de Milão, teatro, parques, áreas residenciais7.
Os terrenos nos quais a Pirelli queria empreender seriam da sua unidade de produção de cabos, num total de 250.000 m² que, segundo a empresa (Sakata 2006), estava ociosa porque uma mudança tecnológica muito rápida no setor tornou a fábrica de cabos telefônicos de Santo André obsoleta. Porém, os terrenos da Pirelli não eram contínuos e uma reestruturação fundiária precisava ser feita para viabilizar o projeto, o que implicava a necessidade de permuta de áreas com Prefeitura e, segundo o projeto, a desapropriação de 36 proprietários de residências e nove pontos comerciais. Para os moradores entrevistados, eram 36 propriedades, mas o número famílias era maior porque entre as propriedades existia um cortiço, que abrigava mais dez pequenas unidades residenciais, com quarto, sala e cozinha.
Os desenhos e projetos foram feitos por Edo Rocha, mas a apresentação do projeto era assinada pela Millano Centrale Real State (atual Pirelli Real Estate), o braço dos negócios imobiliários da Pirelli na Europa. A proposta era ousada, previa alterações estruturais que o município não tinha condições de intervir como, por exemplo, o metrô de superfície8 e, embora envolvesse uma operação de grande porte, o interesse de transformar a área em escritórios comerciais, empresas de produção de tecnologia, mostrou que “havia consonância de objetivos entre a Pirelli e a Prefeitura”.9
A partir destas negociações, foram elaborados dois projetos de lei e enviados à Câmara Municipal. A Prefeitura também notificou os moradores que, pelo projeto, deveriam ser desapropriados, convidando-os para uma reunião. Segundo o relato de três deles, nesta primeira reunião compareceu o então Secretário de Habitação e Desenvolvimento Urbano, acompanhado de assessores, que explicaram que o “projeto era importante para o desenvolvimento da cidade,
7 Revista Exame, de 06 de novembro de 2001. Informações retiradas da matéria: “Charme Italiano: a Pirelli transforma metade de sua fábrica em Santo André”.
8 Parte dos terrenos pertencentes à Pirelli estão diretamente vinculados à ferrovia. Até o início dos anos 90, havia uma parada do trem em frente aos galpões da empresa e, entre 1998 e 2001 a Prefeitura e a empresa pressionaram a CPTM para que a estação fosse reativada.
9Segundo declaração de funcionária da PMSA, em enrevista..
que traria empresas modernas, melhorias no centro e que a Prefeitura daria todo apoio necessário aos moradores, para que ninguém fosse prejudicado, porque a área onde estavam as casas e o comércio precisava ser desapropriada. Todos os moradores estiveram presentes, inclusive muitos filhos, que não moravam mais ali”. 10
As leis referentes a esta operação urbana foram enviadas à Câmara e aprovadas em novembro de 1998, sob os números 7747 e 7748, sendo a primeira chamada de Operação Urbana Pirelli. Na lei 7747, define-se o conjunto de intervenções a serem realizadas, tendo por objetivo promover o desenvolvimento econômico da cidade: I - Reurbanização de parte da Avenida Giovanni Battista Pirelli com implantação de praça urbanizada; II- Execução de viaduto sobre a via férrea; III- Alterações do sistema viário; IV – Construção de unidade escolar. A lei ainda descreve as permutas e desafetações de área, necessárias para a execução da operação, bem como os benefícios oferecidos e contrapartidas exigidas. Foram relacionados os serviços a serem executados para urbanização de duplicação da avenida, e a necessidade de construção de nova escola pelos empreendedores envolvidos na permuta de áreas; a construção do viaduto de transposição da ferrovia teria em troca de benefícios fiscais previstos em lei. O mapa a seguir mostra as áreas previstas na permuta, bem como a área que sofreu desapropriação.
Os incentivos ou benefícios seriam: mudança de zoneamento e alteração dos índices urbanísticos e fiscais, como isenção de IPTU. Assim, além de área industrial, a área abrangida pela Operação Urbana poderia abrigar, mediante outorga onerosa, os seguintes usos: residencial, comércio diário e ocasional, prestação de serviços e estacionamento comercial. Outro benefício proporcionado pela lei seria a alteração dos índices urbanísticos, com normas especiais e mais vantajosas no que diz respeito à altura das construções e índice de construção em relação ao total. Por fim, a lei criou o Fundo de Desenvolvimento Urbano/ FDU e estabeleceu que os recursos depositados na forma de outorga onerosa seriam creditados no mesmo, em conta vinculada à Operação Urbana Pirelli. Chama atenção a composição do Conselho Diretor que faria a gestão deste fundo: três membros ligados à administração municipal: um representante da Secretaria de Desenvolvimento Urbano e Habitação, um membro da Secretaria de Serviços Municipais e um do Núcleo de Planejamento Estratégico. Nenhum representante da sociedade civil, de movimentos sociais, ou dos moradores envolvidos na operação. Os recursos deveriam ser aplicados no pagamento de desapropriações, relacionadas à implantação as obras, bem como em projetos e obras referentes a programas de requalificação urbana desenvolvidos em outras áreas da cidade.
Já a lei 7748, também se refere à (OUP), mas trata da isenção de IPTU aos proprietários de imóveis, situados no perímetro da OUP que, para realização da operação: doassem imóvel;
10 Conforme o entrevistado Levi Souza, à época morador de imóvel que seria desapropriado.
executassem obras e serviços e/ou fizessem doações em dinheiro ao Fundo de Desenvolvimento Urbano. A lei apresenta a fórmula para cálculo de isenção e os prazos para contagem de isenção. Segundo os proponentes, ao final da operação viabilizar-se-ia a „Cidade Pirelli‟, que seria um conjunto de empreendimentos integrados, voltados ao setor de comércio e serviços, como já relatado.
Segundo os moradores, no período em que foram feitas as negociações entre Pirelli e Prefeitura, eles não foram chamados a participar de nenhuma reunião. Pouco antes dos projetos irem para Câmara é que o contato aconteceu, quase um ano depois da primeira reunião. Segundo um dos comerciantes, „todo mundo ficou muito preocupado, porque a maior parte das pessoas morava lá desde que a vila tinha sido construída, no começo dos anos 1950. A maior parte eram pessoas de idade‟.11
Em agosto de 1998, a Prefeitura através dos assessores do Secretário de Desenvolvimento Urbano, chamou uma reunião com todos os moradores, no ginásio de esportes da Pirelli e apresentou as primeiras avaliações, com base no valor venal do IPTU. Foi quando a
11 Sr. Antonio Castigli proprietário de imóvel onde funcionava um posto de gasolina, membro da comissão de negociação por parte dos moradores.
preocupação dos moradores acentuou, pois o valor venal do IPTU estava muito defasado. Wally 12 recorda-se que naquela reunião ela percebeu que os valores de terreno de imóveis de mesma metragem, na mesma rua, tinham sido avaliados de forma diferenciada. Ainda segundo a moradora, ela percebeu que lhe pagariam cerca de 10.000,00 pelo terreno e juntamente com a construção, sua indenização total seria de aproximadamente R$ 26.000,00. Apenas a título de comparação, pegamos dois anúncios do jornal Diário do Grande ABC que indicavam a venda de imóveis no Bairro Homero Thon, explicitando a proximidade da localização com a Pirelli, em 1998. Eram de casas com dois dormitórios, sala cozinha e banheiro e os valores variaram entre R$55.000,00 e R$65.000,00, o que é indicativo de que realmente havia problemas na avaliação inicial realizada pela Prefeitura.
Mesmo com o questionamento por parte dos moradores, no final de setembro de 1998, os dois projetos de lei foram enviados à Câmara. Então, segundo os entrevistados, eles começaram a se reunir seguidamente e a procurar a Câmara e a Prefeitura para ver como ficariam as negociações; havia o temor de que eles não conseguissem negociar e de que a desapropriação fosse feita por decreto. Levi13 faz questão de frisar que o secretário de desenvolvimento urbano tinha „desaparecido‟, que ele não recebia os moradores, que tinha aparecido apenas na primeira reunião, para dizer como o projeto era importante para a cidade. Vendo o descaso e com a ameaça de serem muito mal indenizados, segundo Levi e Wally, eles passaram a ir à Câmara toda semana, o que resultou, segundo Levi em duas vitórias iniciais para eles: a perspectiva de uma audiência pública realizada em 22 de outubro de 1998, e a intermediação da ACISA (Associação Comercial e Industrial de Santo André). Na audiência pública os moradores contestaram os laudos e, diante do impasse e da visibilidade que as manifestações começavam a ter, a Prefeitura acenou para a negociação de novos valores, conforme revela reportagem do Diário do Grande ABC de outubro de 1998.14
A aprovação dos projetos na Câmara, em novembro de 1998, ocorreu mediante o acordo de que uma nova avaliação dos imóveis seria feita, atendendo a solicitação dos moradores. Mas, este novo laudo também foi contestado pelos moradores, conforme reportagem publicada em fevereiro de 199915; a maior queixa se referia ao valor dos terrenos que, segundo moradores estava bem abaixo do mercado. Nesta reportagem, a moradora Ivone diz: “O valor de minha casa abaixou; não consigo mais dormir.”
Os moradores conseguiram se organizar e pagaram uma perícia independente, mas a prefeitura se recusava a aceitar a avaliação realizada. Criou-se um impasse e a prefeitura decidiu
12 Wally Pratscher, professora, moradora por quarenta anos na mesma casa, na vila desapropriada.
13 Levi de Souza, morador da vila, um dos membros da comissão de negociação.
14Reportagem intitulada: “Santo André admite rever desapropriação”, publicada em 24 /10/98.
15 DGABC. “Morador critica nova perícia”, matéria publicada em 18/02/99.
então que contrataria outro perito, não para novo laudo, mas para avaliar os três e chegar a uma conclusão final. Segundo a Prefeitura, quem não aceitasse deveria ir à justiça, conforme reportagem do Diário do Grande ABC16
Devido a problemas de documentação em muitos imóveis, os pagamentos demoraram a acontecer, tornando a angústia ainda maior. A demora também foi maior para os comerciantes, cujo laudo foi entregue posteriormente.
Do ponto de vista da Pirelli, expresso pelo senhor Sidnei Muneratti (apud Sakata 2006): as casas eram um enclave; estavam velhas, situadas num lugar ruim e os moradores ficaram satisfeitos com as desapropriações. Para Wally, no entanto, muitos moradores tinham pelo lugar, um valor sentimental; tinham criados seus filhos lá e todos se conheciam há muito tempo: “o processo foi doloroso e muitos não aceitavam a mudança, mas sabiam que não havia como impedir. Tínhamos medo que a coisa (sic) fosse para a justiça e que os tratores derrubassem nossas casas”, disse. Levi ressaltou que foi a amizade entre eles que possibilitou a força do movimento.
Como resultado das OUP, a Pirelli ficou com seus terrenos interligados, pois a Avenida Alexandre de Gusmão fez parte da permuta, e passou a integrar as propriedades da empresa, como se vê no mapa nº 2. Além disso, diminuíram seus custos operacionais, pois a empresa passou a ter uma única portaria e segundo Levi o transporte de uma unidade a outra ficou mais rápido e barato, pois a “Avenida Alexandre Gusmão era de mão única, o que obrigava os caminhões a dar uma volta pela Avenida Capuava para entrar na outra unidade do outro lado da rua”.17 Além disso, a empresa conseguiu reestruturar o desenho de suas propriedades, com a Rua Giovanni Batista Pirelli reurbanizada, valorizando seus próprios imóveis. Pelos mapas nº 1 e nº 2, e pelas informações obtidas junto aos moradores e pelo destino da área que até hoje se encontra sem utilização, pode-se inferir que o projeto „Cidade Pirelli‟ foi uma estratégia para garantir uma reestruturação imobiliária dos imóveis da empresa, garantindo-lhe a possibilidade de auferir maior renda no futuro, num caso exemplar de especulação com a terra urbana. Além disso, e mais significativo, é o fato de que as residências foram trocadas por uma praça, o que mostra que, a maior parte dos imóveis desapropriados não atrapalharia o projeto Cidade Pirelli, a não ser pelo fato de serem velhos e abrigarem uma população que não dispunha de alto poder de consumo.
16 Reportagem intitulada: “Desapropriação custará R$ 2,2 milhões”.
17 Não conseguimos confirmar esta informação oficialmente pela Pirelli, mas o Sr. Antonio reafirmou a tese de Levi.
O Sr Sidnei, advogado e representante da Pirelli nas negociações (apud Sakata 2006), explica a satisfação da Pirelli, afirmando que antes da OUP, a empresa não poderia nem pensar nisto e que o ganho imobiliário foi muito satisfatório para Pirelli.
[...] E era o que ocorria, nós estávamos impedidos de racionalizar o espaço urbano de 500 mil metros da fábrica. Então, o ganho da empresa foi exatamente este. [...] (MUNERATTI, apud Sakata 2006, p.290)
Em resumo, a operação Cidade Pirelli resultou na reestruturação fundiária dos imóveis da Pirelli, na duplicação e reurbanização de parte de via que defronta com estes imóveis, na implantação de um parque-praça lindeiro aos terrenos, e na construção de uma nova escola municipal, uma vez que para a reurbanização da via, a escola existente foi demolida, e na desapropriação de famílias e comerciantes. A Pirelli não se interessou em construir a transposição sobre a via férrea, intervenção também prevista na lei da OUP 7747/98.
Apesar de todos estes esforços, a proposta do conjunto „Cidade Pirelli‟ ainda não se efetivou. Para o senhor Toninho, a luta dos desapropriados é certamente um dos motivos pelos quais o projeto não vingou: a Pirelli teve que pagar muito mais do que havia projetado. De fato, a permuta de áreas entre Prefeitura e a empresa só foi aprovada por lei (7830/99) em junho de 1999, nove meses depois de a OUP ser apresentada à Câmara, o que revela as dificuldades enfrentadas para a viabilização do projeto, em função da resistência dos moradores. Mas, a pesquisa apurou que, em agosto de 1999, foram assinados os termos de compromisso entre
Pirelli e PMSA, para dar prosseguimento às tratativas. A análise destes documentos revela que a desapropriação paga, em tese, pela Pirelli, saiu, de fato, dos cofres públicos.
Em caráter de outorga onerosa, a empresa depositou no Fundo de Desenvolvimento Urbano o valor de R$ 2.000.000,00, em três parcelas. Este recurso foi utilizado na reforma e cobertura do calçadão da rua Oliveira Lima, no centro da cidade. Para fazer as desapropriações, a Pirelli usou a lei 7748/99, depositando no FDU, um total de R$ 5.565.042,10, valores que serviram de base e cálculo para isenção do IPTU, sendo que alguns terrenos da empresa obtiveram isenção de sete anos! Portanto, não é verdade que a Pirelli pagou as desapropriações, como foi noticiado: ela simplesmente antecipou os recursos que seriam arrecadados pelo município com o IPTU. De fato, houve uma estratégia da empresa para apropriar-se da riqueza social na forma da renda fundiária, explicitando o urbano como negócio.
Um embrião do que poderá vir a ser a Cidade Pirelli, despontou com a instalação da sede tecnológica da TIM em parte dos antigos galpões reformados da Pirelli Cabos. A Prysmian, que comprou a Pirelli Cabos em 2002 (em nível mundial), está desenvolvendo suas atividades em prédio em frente ao prédio da TIM. No entanto, todo o terreno, cuja frente está para a Giovanni Batista Pirelli, ainda não foi ocupado. Mas, ao que tudo indica, a demora na concretização dos empreendimentos não foi uma surpresa para a empresa. Segundo reportagem da Revista Exame:
O tempo de maturação não preocupa a empresa. A experiência de Milão ensina que a fase de preparação de uma proposta com estas características é demorada. (...) “Nosso projeto está amadurecendo aos poucos. (...) O mercado imobiliário é muito sensível às circunstâncias econômicas. Não temos pressa, afirma Della Setta. (2001)
De todo modo, a potencialidade da área para novos investimentos e ganhos imobiliários foi dada com a inauguração do viaduto Salvador Avamileno, que liga a via Giovanni B. Pirelli à avenida dos Estados, construído pela prefeitura municipal e inaugurado em 2008, num custo de 30 milhões de reais. Segundo reportagem do jornal Repórter Diário18, em março de 2010 a Pirelli realizou um seminário, no qual participaram membros da prefeitura municipal e, neste evento foi anunciado que os imóveis seriam colocados à venda. A reportagem cita ainda que o valor dos terrenos seja estimado em 500 milhões.
A trajetória desta operação urbana bem como seus desdobramentos permite refletir sobre a hipótese de que o movimento da reprodução engendra o novo sem, no entanto, eliminar
18 Amaral,L Por falta de investidor, Cidade Pirelli desmorona. Disponível em: http://www.reporterdiario.com.br/site/noticia.php?id=177302&secao=13
de imediato as condições e relações já existentes. Por um lado, chama a atenção o fato de que uma das estratégias de diversificação de investimentos da empresa seja o investimento no mercado imobiliário, não apenas para formação de patrimônio, mas como um negócio. Para isto, constituiu uma empresa independente, mas articulada ao grupo que, segundo o senhor Muneratti é uma das mais fortes de toda Europa. Portanto, aqui, os interesses estão diretamente vinculados com os ganhos advindos do mercado formado pela propriedade privada do solo. Para Lefebvre (2004) este momento revela a conquista total do espaço, a decadência da produção e o avanço do setor imobiliário no processo de reprodução. Na OUP, os interesses imobiliários da Pirelli ficam claros na operação, e a reserva de parte dos terrenos, deixados sem construção ou utilização, indica o uso da velha tática do especulador: esperar que os empreendimentos públicos (no caso, o viaduto de transposição) fosse realizado para valorizar os imóveis. Para alavancar o processo, a mediação do poder público foi fundamental, pois só com o poder estatal foi possível desapropriar, desafetar áreas, permutar e o projeto Eixo Tamanduatehy enquanto uma operação urbanística viabilizou isto.
Todo processo de desapropriação marca a contradição entre o uso e o valor de troca, na produção do espaço capitalista. Para a Pirelli, eram só umas casas velhas, um enclave; retirá-las seria um benefício aos moradores. Mas, vê-se claramente que a desapropriação constituiu-se numa estratégia pensada em termos de valorização futura dos imóveis da empresa. A “Cidade Pirelli” não quis ter ao seu redor, algumas casas pequenas e velhas.
Para aqueles que foram entrevistados, no entanto, toda luta para melhorar as condições em que seriam desapropriados, estava vinculado de um lado à imposição da propriedade privada o solo, mediada pelo mercado imobiliário, o que determinava a necessidade de uma avaliação de seus imóveis com base no valor de troca. Isto fica expresso nas palavras do senhor Toninho: “Eu sempre falei: a gente não pode impedir o progresso, mas também a gente não pode ser vítima dele”, numa alusão a uma desapropriação que fosse justa do ponto de vista do mercado, uma vez que este se constitui na mediação para ter acesso à moradia.
Mas por outro lado, era a vida, os laços afetivos, as memórias que estavam em jogo e, por isto, maiores a angústia e o temor. Segundo Wally, pelo menos seis moradores faleceram após a mudança. Na sua visão, embora já fossem idosos, eles morreram de tristeza, porque “as pessoas de idade querem viver com suas lembranças e a casa permite revivê-las. A dona Franca, por exemplo, chora até hoje porque teve que sair de lá.”
Neste caso, o conflito entre o uso o valor de troca foi mediado pelo Estado que, ao se erigir como aquele que exerce o poder em nome de todos, se legitima e, com isto, é capaz de
projetar a lógica da reprodução no território. Aqui se pode pensar no processo de gentrificação,19 que se consumou para viabilizar novos investimentos e uma revalorização.
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19 Segundo Rigol (2005): Gentrificação é um conceito que remete ao conflito de classes, num contexto de transformações urbanas “um processo de segregação social que leva à expulsão daquelas pessoas incapazes de suportar o processo de revalorização do lugar.” (p.100)
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