NOTÍCIAS DE EXPERIÊNCIAS DE LUTA PELA MORADIA – I

Fabiana Valdoski Ribeiro

valdoski@usp.br

fabianavaldoski@gmail.com

Barcelona – Fevereiro – 2013

Logo no início de um texto, Seabra (1996:71), ao tratar da obra de Henri Lefebvre, expõe que o núcleo do pensamento do autor é o uso. No entanto, a busca não está apenas na apreensão do uso em si, mas na contradição que se dispõe em relação ao par dialético troca. É esta relação entre uso e troca que nos deparamos quando tentamos esmiuçar os processos de resistência no espaço urbano. O uso – emprego do tempo num determinado espaço – revela o embate com a tendência lógica da quantificação e da eficiência do tempo, bem como o confronto com a instrumentalização do espaço.

Diante destes conflitos entre uso e troca, consideramos que a resistência é plástica e se conforma de acordo com o embate estabelecido entre os sujeitos implicados nas estratégias de produção do espaço, e, justamente por isso, as formas de uso também se diversificam. É esta diversidade que queremos apresentar diante de duas experiências de luta pela moradia na cidade de Barcelona/Catalunha/Espanha.

Ambas envolvem a ação corporal (o uso do tempo e do espaço pelo corpo). A primeira é a ocupação de ruas para manifestação e, a outra, se refere a ações imediatas no dia-a-dia, como plantar, colher, cozinhar e, desse modo, resgatando o sentido de ciclo vital. De acordo com Harvey (2004: 135), o corpo é utilizado como estratégia de acumulação, impregnado de representações e envolvido nas tramas do quantitativo. Todavia, ele não se põe como algo passível, ao contrário, está em permanente mudança e reação. E é isto, a nosso ver, que se constitui o irredutível: o movimento permanente de resistência do corpo a linearidade imposta pela estratégia de acumulação.

Em Barcelona, no mês de fevereiro de 2013, em pleno momento de grandes mobilizações contra a fase de despossessão feroz sobre a sociedade espanhola, houve também manifestações de grandes proporções em luta pelo direito à moradia.

Na mesma cidade, uma experiência de uso do espaço não muito recente por já ter mais de 11 anos, revela o morar como sentido de resistência ao processo de linearidade sobre o corpo e tenta repor, através do uso, relações cíclicas.  Na casa ocupada chamada de Can Masdeu, há como proposta o desenvolvimento de um modo de vida baseado na autogestão e nas relações coletivas.

Manifestação - 16 – F (16 DE FEVEREIRO) – STOP DESPEJOS – PELO DIREITO À MORADIA E CONTRA O GENOCÍDIO FINANCEIRO

A crise instalada nos últimos anos está intimamente ligada à financeirização do imobiliário. Na Espanha, o conjunto de leis que rege os créditos para hipoteca imobiliária é um dos mais perversos no mundo, principalmente, quando a família não pode mais continuar pagando a dívida contraída. Diferentemente ao Brasil, em que ao não podermos pagar a “casa própria” as entregamos ao banco e quitamos a dívida, na Espanha isto não ocorre.

Quando se firma um contrato de hipoteca, o vínculo da dívida não está diretamente condicionada ao imóvel em si, mas, ao valor de mercado no período de compra, sendo este a base para o endividamento. Disso resulta, que quando o valor do imóvel cai no mercado e a família não pode arcar com os custos da hipoteca, há uma diferença da dívida contraída, mesmo com a entrega do imóvel alienado, e que se deve continuar pagando. Portanto, aquele que se hipotecou é despejado e continua com uma parte da dívida para seguir pagando.

Casos absurdos ocorrem nessa dinâmica enlouquecida da hipoteca. Geralmente, a família que irá se hipotecar necessita dar alguma garantia, aparecendo a figura de um “fiador”. Na maioria das vezes, quem exerce esse papel são os pais ou avós que já são proprietários. Quando o casal ou família hipotecada não consegue arcar com as parcelas da dívida e se ordena entregar o imóvel (ação de despejo), muitas vezes, o banco que concedeu o empréstimo igualmente exige o bem do fiador. Nessa dança das hipotecas, os despejos, além de atingir o hipotecado diretamente envolvido, também alcança sua família, que já havia comprado um imóvel muitos anos antes (às vezes casas pertencentes a família à décadas). O resultado não é de apenas uma família despejada, mas sim duas. E se os dois imóveis não alcançarem o valor da dívida a equação fica desse modo: 1 despejo de família  hipotecada + 1 despejo de família proprietária + pagamento do restante da dívida pela família hipotecada = os bancos ficam com duas propriedades + com direito de pressionar as famílias envolvidas já que ainda há uma dívida a ser paga. Podemos imaginar perversidade maior no processo de financeirização?

Diante desse grave problema relacionado as hipotecas, se formou um grupo chamado de Plataforma dos Afetados pelas Hipotecas - PAH[1]. Cabe dizer, que movimentos relacionados ao direito a moradia digna já existia no país, como por exemplo, o V de Vivienda do qual se originou o grupo acima mencionado. Estes movimentos questionavam a tempos a lógica imobiliária em que Espanha está envolvida.

Com o aprofundamento da crise, as taxas de desemprego aumentam de maneira exorbitante[2] e associada a uma porcentagem muito grande de hipotecados, há um arrastão de inadimplência. Desse modo, o volume de despejos também esteve em taxas exponenciais. Segundo um dos maiores jornais da Espanha, em julho de 2012, era mais de 500 despejos ao dia no país[3].

As organizações da PAH de muitas cidades espanholas estiveram protestando nas ruas contra esse massivo processo de despejos, denunciando, o que a muito tempo os movimentos de moradia faziam, os absurdos da financeirização imobiliária ao nível social. A resistência continuou e novos caminhos foram abertos para lograr a interrupção de muitos dos processos de despejos das famílias.

Atualmente, um momento importante está ocorrendo. Uma das formas de luta é a exigência da dación en pago. O que isto significa? Quando a família não pode mais pagar a casa, ela a entrega sem continuar com as sobras de uma dívida originada de juros. Este procedimento é o que passa no Brasil. No entanto, não apenas esta reivindicação está na pauta. Há também as exigências de paralisação dos despejos e a criação de uma política pública de aluguel social. Para tanto, foi realizada uma campanha massiva para concretizar essas reivindicações. A partir da Iniciativa Legislativa Popular, que conseguiu 1,4 milhão de assinaturas, levaram ao Parlamento Nacional, uma proposta de lei.

Em 16 de fevereiro de 2013, muitas pessoas se manifestaram nas ruas para pressionar a aprovação dessa legislação. Foi o uso do corpo sobre a rua a representação efetiva da convergência de uma luta pela moradia. Em Barcelona, a manifestação teve como ponto de chegada a sede do Partido Popular – PP (atual partido de governo).

Como se pode observar nas fotos abaixo, as faixas de protestos expõem claramente os sujeitos envolvidos no conflito e denunciam o mundo financeiro como motor da crise e da precarização da vida.

Foto 01 – Título da Manifestação – “Stop Despejos – Pelo Direito à Moradia e Contra o Genocídio Financeiro e Mostramos os Responsáveis”

16/02/2013

Foto 02 – Faixa de Manifestação “O Capitalismo Mata - Stop  Despejos"

16/02/2013

 

Foto 03 –  “A moradia é um direito”

16/02/2013

Foto 04 – Cartaz de Convocação para a Manifestação.

16/02/2013

 

Estas ações de pressão sobre o Parlamento para aprovação da legislação proposta continua nas cidades espanholas e o mecanismo principal de luta é a espacialização do corpo pelas ruas. Uma ação de uso que denuncia a despossessão de uma sociedade em profunda crise. Em março, as pressões populares conseguiram por adiante a discussão da lei.

CAN MASDEU

De acordo com Xavier, Leiva e Miró (2007:202), os novos protagonistas sociais trazem como inovação as relações imbricadas entre militância (política), vida e trabalho, ou seja, se propõem uma concepção unitária entre três momentos que tendem, insistentemente, a ser fragmentados pelo espaço-tempo subjugado aos ditames cumulativos. Para eles, é uma prática vinculada à existência e, portanto, avaliamos como uma ação de uso do espaço pelo corpo em que estão implicadas as concepções e práticas políticas ao nível social para mudar qualitativamente as relações e empreender um projeto de apropriação.

Um exemplo dessa integração, em que a resistência se realiza ao nível social e no espaço tempo da vida cotidiana, está nas ações de um grupo localizado no Vale de Can Masdeu - bairro de Canyelles - na serra de Collserola em Barcelona.

Trata-se de um grupo de jovens que ocuparam uma antiga casa sem uso e de propriedade de um dos hospitais existentes em Barcelona. Desde a década de 1970 a casa estava trancada, vazia e sem nenhum uso, como muitas das másias[4] existentes em torno do tecido urbano mais densificado. Diante desta realidade, os jovens de inspiração Okupa iniciaram uma nova história para o lugar. Começaram a promover, por meio de uma prática cotidiana, um uso diferente em que se pautava num modo de vida coletivo e ecológico.

O núcleo central do projeto é ser “uma coletividade viva”. Para isso, propõe ações de cooperação de trabalho e consumo, atividades de encontro e iniciativas de convivência coletiva. Um exemplo são as hortas coletivas em que os participantes não se resume ao grupo que vive na casa, mas é compartilhada com os moradores do entorno.

Para continuar com as propostas, tiveram que enfrentar as insistentes tentativas de desocupação judicial e resistiram completando dez anos de existência. Hoje, continuam com os projetos que envolvem o dia a dia de todos sendo o uso a base de transformação da vida.

 

Foto 05 – Can Masdéu – A Casa ocupada ao final de 2001. Antes pertencia ao Hospital de Santa Creu e estava abandonada desde os anos 1970.

24/02/2013

 

 

Foto 06 – Pintura em uma das paredes da casa representando o projeto.

24/02/2013

Foto 07 – A horta comunitária com princípios orgânicos. Além dos moradores cultivarem nessas áreas, os vizinhos também participam.

24/02/2013

 

Foto 08 – Indicação para o Centro Social onde se realizam festas e se vende comida para arrecadar fundos para a comunidade. Um dos princípios é se auto financiar para garantir autonomia nos projetos desenvolvidos.

24/02/2013

Foto 09 – Parque para crianças e ao fundo um reservatório de água potável para abastecer Can Masdéu.

24/02/2013

 

 

Bibliografia

Seabra, Odette. A Insurreição do Uso. In: Martins, J. S. Henri Lefebvre e o retorno à dialética. São Paulo; Hucitec, 1996.

Arxiu Históric de Roquetes Nou Barris. Rutes per Collserola: Patrimoni natural i cultural. Barcelona, 2013.

Harvey, David. Espaços de Esperança. Edições Loyola: São Paulo. 2004.

Leiva, E., Miró, I., Urbano, X. De la protesta al contra poder: Nous protagonismes socials en la Barcelona metropolitana. Virus Editorial. Barcelona; 2007.

 

Sites e Artigos Digitais:

https://www.diagonalperiodico.net/

http://www.attacmadrid.org/wp/wp-content/uploads/w_DecalogoV.pdf

http://www.afectadosporlahipoteca.com/wp-content/uploads/2012/01/ilp_dacic3b3n-en-pago-retroactiva_moratoria-de-desahucios_alquiler-social.pdf

http://afectadosporlahipoteca.com/

http://huertosurbanosbarcelona.wordpress.com/00_huertos-urbanos-cultivando-barcelona/11-huertos-comunitarios/14-can-masdeu/

http://www.canmasdeu.net/?lang=en

http://www.elperiodico.com/es/noticias/barcelona/can-masdeu-cumple-anos-como-simbolo-integracion-okupa-1303832

http://economia.elpais.com/economia/2013/03/04/actualidad/1362406571_195097.html

http://elpais.com/tag/desahucios/a/

 
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