A Geografia Crítica no Desvendamento dos Movimentos de Moradia

Larissa Mies Bombardi

Resenha do livro: Na procura do lugar: o encontro da identidade. Um estudo do processo de ocupação coletiva da terra: Osasco.

Autora: Arlete Moysés Rodrigues

Arlete Moisés Rodrigues, em sua tese “Na procura do lugar o encontro da identidade. Um estudo do processo de ocupação de terras: Osasco”, nos brinda com uma primorosa e crítica leitura da cidade e de seus conflitos sociais. A tese, defendida em 1988, sob orientação do saudoso Prof. Manuel Seabra, professor aposentado do Depto de Geografia USP, é uma das primeiras a discutir a questão da luta por moradia na cidade.
Arlete inicia seu trabalho resgatando sua própria história de pesquisa, que tem início na compreensão do crescimento explosivo das favelas em São Paulo. A autora propõe uma interpretação crítica da existência das favelas, que conduz o leitor à compreensão deste fenômeno no âmbito do capitalismo e da organização do espaço “para e pelo capital”:
A favela é uma “instituição necessária” ao desenvolvimento do capitalismo, porque é onde se aloja uma parcela da classe trabalhadora. Na aparência há uma contradição entre a massa de riqueza gerada e a extrema penúria de uma grande parte dos trabalhadores. Na essência, o mesmo processo que propicia a produção da riqueza, espolia o trabalhador até o limite máximo da sua força de trabalho, única riqueza que lhe restou e que vê esgotada dia a dia (...)(p.10)
Notamos neste livro o referencial marxista da autora e um delicioso movimento do geral ao particular e, no outro sentido, do particular ao geral, indo e vindo, mergulhando na compreensão do desenvolvimento do capitalismo, enxergando suas contradições no estudo de caso que desenvolve e, novamente, retomando os aspectos centrais da reprodução do capital.
O livro está dividido em quatro capítulos, incluindo a introdução em que autora discorre sobre seu processo de pesquisa, no qual o trabalho de campo – através da pesquisa participante – teve lugar central.
A beleza do livro está também na forma aberta com que a autora expõe suas angústias e dúvidas quanto ao lugar do pesquisador, seu “lugar do olhar” que é ao mesmo tempo um “lugar de ser visto”. Arlete Moysés Rodrigues manifesta a angústia que sente diante da expectativa que seus interlocutores têm a respeito da forma como ela colabora com o grupo.
Há uma grande virtude neste posicionamento: a primeira é a da autora deixar-se ver no próprio processo da pesquisa, a segunda é mostrar a contradição existente no movimento da pesquisa.
O mergulho da autora na realidade que se propôs a estudar – sua pesquisa participante – foi de tal ordem que ela própria tornou-se uma referência não só para os estudos que dizem respeito à questão da moradia, como também se tornou uma referência no âmbito político “quando o assunto” é moradia/reforma urbana.
Este livro está inscrito no processo de discussão da Reforma Urbana no Brasil. Ele é fruto da luta pela moradia, e, ao mesmo tempo, a frutificou. Arlete – no desenvolvimento de sua pesquisa – muito além de coletar dados e tecer riquíssimas entrevistas – passou a participar dos movimentos de discussão e coleta de assinaturas para a Proposta da Iniciativa Popular sobre a Reforma Urbana.
Sua tese foi defendida no ano da nossa de Constituição de 1988, Constituição que reza sobre a “função social da propriedade”, resultado da luta dos movimentos sociais organizados. Esta tese não só discorre sobre este processo, como, mais do que isto, é parte dele!
Além da Introdução e das considerações finais, o livro tem mais três capítulos, assim intitulados: “Uma reflexão sobre a metrópole paulista e a propriedade da terra urbana no Brasil”, “Os discursos sobre o acesso a terra e a moradia na cidade”, “O cotidiano dos processos de ocupação de terras: Movimento Terra e Moradia – Osasco“.
No capítulo II “Uma reflexão sobre a metrópole paulista e a propriedade privada da terra” a autora mergulha na interpretação da metrópole no âmbito da reprodução ampliada do capital; nos diz ela:
As metrópoles capitalistas são ao mesmo tempo concentração e dispersão; socialização da produção e apropriação individual dos lucros; aglomeração e isolamento. Concentração de capitais, de produção, de homens, de edifícios, de riqueza e de pobreza. Concentração de múltiplos usos, distribuídos em diferentes ‘áreas’, concentrando-se em umas riquezas e em outras – a maioria – pobreza. Dispersão dos indivíduos no interior das concentrações. Isolamento dos indivíduos nas aglomerações. (p.31)
Que bela imagem dialética da metrópole! “Dispersão dos indivíduos no interior das concentrações. Isolamento dos indivíduos nas aglomerações”. A autora, inscrita na tradição geográfica marxista, traduz de maneira ímpar as contradições do espaço urbano, tecendo sua tese num rico diálogo com o leitor, jogando luz sobre o significado deste processo no que tange à moradia que é, no limite, muito mais do que o local em que cada um de nós ocupa no planeta, bem ao contrário, ela é carregada de símbolos e sentidos.
É neste âmbito que se evidencia um dos aspectos centrais de sua obra: “penso que a luta pela moradia caracteriza um processo extremamente rico que permite analisar a produção e o consumo do espaço urbano, notadamente porque a produção é social, mas é imputado ao indivíduo a resolução da questão de como e onde morar” (p. 48)
A autora, ainda neste capítulo reconstrói o trajeto da propriedade da terra no Brasil, resgatando o papel central da Lei de Terras de 1850, responsável pela transformação da terra em mercadoria. Arlete se abebera em Marx para compreender a questão da renda da terra e procura pensá-la à luz da especificidade imposta pela cidade.
As fotos que encerram o capítulo são particularmente reveladoras, trazem ao leitor a crueza da vida cotidiana na miséria da metrópole.
No Capítulo “Os discursos sobre o acesso a terra e a moradia na cidade” Arlete busca apreender os modos como são vistos os moradores de favela e, mergulha ainda – sem medo de mostrar visões antagônicas – no significado da autoconstrução revelando que esta
...é uma atitude reacionária em relação ao processo construtivo em si, pois impede uma forma mais racional de produzir habitação (...) provoca um alargamento da jornada de trabalho (...) significa a manutenção da força-de-trabalho na reserva, que beneficia o capital, pois deixa de entrar (....) no cômputo do salário.
Entretanto, por outro lado, a autora busca o significado de tais práticas para os moradores de favela e pondera “que para os movimentos organizados não se pode falar em autoconstrução e sim e m mutirão: um processo de trabalho conjunto, que é considerado uma forma de organização” ... (p.144)
Mutirão difere em tudo da autoconstrução, no sentido de que resgata práticas ancestrais das classes subalternas (incluindo aí o campesinato), trazendo força às teias de relações pessoais e dando identidade ao grupo que o pratica.
Finalmente, Arlete Moisés Rodrigues busca desvendar como algumas instituições se posicionaram em relação às favelas naquele período histórico (década de 80 do século XX), primeiro abordando cada um dos partidos políticos e, posteriormente, buscando compreender o posicionamento da Igreja, particularmente a Igreja da Teologia da Libertação, que via CEB’s procura mostrar a cada um dos cristãos “o princípio de que a propriedade da terra tem uma função social” (p.164) – participando, ela própria – da organização do movimento, ainda que não tenha colocado em questão a propriedade privada da terra.
Em seu último capítulo, a autora resgata a história do Movimento Terra e Moradia de Osasco, principalmente a partir de depoimentos colhidos em trabalhos de campo. A autora resgata desde importantes elementos do cotidiano das famílias, até os entraves políticos com os quais o Movimento teve que se debater, dentre eles cabe ressaltar o conflito com a COHAB-SP, quando o Movimento resolve construir um barracão para as reuniões em área da própria COHAB. O Barracão foi incendiado por duas vezes.
Ao tecer esta história a autora mostra o movimento “em movimento”, a partir da luta e da resistência, trazendo falas que, se por um lado revelam a dureza e a crueza da luta, revelam também toda a beleza que a sustenta, a partir da força e da solidariedade. É neste processo que, nos mostra a autora, a identidade entre os moradores passa a ser construída.
Esta identidade – para além do lugar que se mora – tem um ingrediente muito específico que é o da participação em uma luta comum. Esta participação, que se dá via enfrentamento, via tensão, via ocupação e via permanência, dá amálgama ao grupo/grupos que logram a conquista da terra.
A autora é testemunha deste processo, uma testemunha que busca vivenciá-lo por dentro, relatando as ocupações nos detalhes de seu cotidiano: no drama de empurrar caminhões, na realização da mudança, nas tarefas à noite com luz de lampião, na chegada da polícia, na busca por alojar as crianças nas noites frias...
Finalmente, na coerência dialética de sua tese, a autora constrói um vídeo do/com o movimento e relata a maneira como os próprios integrantes assistiram ao vídeo. Ou seja, em um primeiro momento a autora olha de fora, depois mergulha no Movimento, toma a distância mediada pela câmera, mergulha para os depoimentos, toma a distância para a edição, e, por fim, mergulha novamente para o interior do Movimento trazendo o vídeo que é “de dentro e de fora ao mesmo tempo”, mostrando aos de dentro a visão a partir de fora e, buscando trazer para o leitor (de fora), como os de dentro enxergaram ser vistos e serem visíveis por/pelos de fora:
Em geral a emoção toma conta dos que viveram a história, embora possam não  aparecer no vídeo. Lembram-se de em detalhes das assembléias, das reuniões, da polícia, etc (...)Há muitas histórias de vida (...) História que mostra a resistência que caracteriza a vida cotidiana dos trabalhadores espoliados, que ganham maior visibilidade em momentos de conflito. É esta resistência cotidiana, é este conflito explícito, na luta pela moradia, que gesta, também um encontro de identidade. Identidade de classe em movimento de classe. São manifestações de luta de classe. (p.284-286)
Este excerto, do último capítulo, fecha magistralmente sua abordagem marxista, enxergando o papel da classe social, que através da identidade construída, luta pela transformação de suas condições de vida.
Na introdução da obra a autora indica o desejo de que seu trabalho possa ser transmitido, contado; que sua reflexão possa ser compartilhada.
A publicação deste livro pelo Labur Edições colabora com este propósito e nos trás – depois de passados 20 anos – uma reflexão que é tão atual, quanto as chagas que ainda vicejam nas grandes cidades. Sua publicação permite, ainda, o deleite da leitura de uma obra que é uma referência não apenas para os estudiosos da Geografia Urbana, como para todos aqueles interessados em uma leitura geográfica verdadeiramente crítica.